PROSOPOPEIA
Prof. Antônio de Oliveira
antonioliveira2011@live.com
Tanto autores antigos como modernos às vezes empregam “quem”, em vez de “que”, referindo-se a animais e coisas, enfim, a outros substantivos que não de gente. "E a vingança era quem o impelia", como se lê em Alexandre Herculano. Saramago pergunta: “Que é, ou quem é, Portugal?”
Esse lance não me parece mera questão gramatical, de figura de linguagem, de personificação, prosopopeia ou metagoge. Sem complicação, isso vai às vezes da leitura que, indo fundo, a gente faz da realidade não apenas emprestando voz a seres inanimados, animais, ou mesmo a gente morta como o fez Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas.
Depois de perguntar quem é Portugal, Saramago continua e, detalhe importante, usando letras maiúsculas: Uma Cultura? Uma História? Um Adormecido Inquieto?
A pergunta, ao entrar num estádio, da grã-fina de Nelson Rodrigues, não terá sido tão simplória ou alienada: “Quem é a bola?” Na indefinição do pronome interrogativo uma precisão metafísica: bola deixa de ser coisa para ser personificada, comportando o pronome designativo de gente. É símbolo. Antes, durante, depois. Um só coração. Pois até “futebol se joga na alma”, filosofou e poetou, ou poetou filosofando Carlos Drummond de Andrade.
Nesses casos é um quiproquó que não significa confusão de uma coisa com outra (do latim, “quid pro quo”, isto por aquilo). Na verdade, às vezes seres inanimados falam, e falam mais alto que nós, que nos julgamos donos da bola e exclusivos manipuladores de letras falantes. Aliás, para Anatole France, um dicionário é o universo em ordem alfabética. Um universo estático, em estado de dicionário, mas com todos os ingredientes da fala e da escrita. No fundo, concurso literário é como concurso de culinária. A nós, cozinheiros de sopa de letrinhas, compete aviar receitas, sempre procurando atender a um bom paladar. Do profeta Ezequiel a receita: “Come esse livro”. E por que não?
Na minha boca torna-se doce como mel.