.:. Uma tarde no cinema .:.

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O mundo é das minorias, sempre foi!

Shopping Cariri, 16h45min.

Sentia-me o pai perfeito e o marido ideal também. Às vésperas do Natal, reuni a família para assistir ao filme Lua Nova, o segundo da série que anda fazendo a cabeça da garotada e dos velhos – a vida está mesmo sendo vivida em pacotes, tudo no mesmo saco e servido padrão universal, cabendo em qualquer bolso, casa e nação. E ai daquele que discordar dessa realidade padronizada!

A sessão era de 12 anos. O moço da portaria falou que “acompanhada dos pais ela entraria” – referindo-se à minha filhinha mais nova, de sete anos. Preciso examinar se essa anuência tem respaldo legal... Juristas de plantão, uma forcinha, por favor!

Eu era o mais velho do grupo, mas, acreditem, fui o único a ter direito à meia entrada! A esposa parou de estudar – virou empresária; as duas filhas, estudantes, justificaram que por andarem de carro seria dispensável o uso da carteirinha que dá direito à meia. E não paguei meia por estudar, não foi por isso! Na verdade, dei a velha e famigerada carteirada que os milicos adoram! – abri a carteira e surgiu a milagrosa vermelhinha que tem o condão de abrir portas.

Segundo passo, segunda etapa do processo pai-boa-praça: comprar as pipocas e os refris. Eu as deixei sentadinhas e bem acomodadas. Comprei enormes quatro sacos de pipocas (não tão exorbitantes quanto o preço que os pagou) e quatro latas de guaraná, geladinhas... E voltei todo feliz.

Ufa! Missão cumprida. Todo mundo sentadinho. Boquinhas abertas mastigando – nossa, a garota atrás de mim mastigava porcamente e aquele barulho de saliva misturado com pipoca moída me dava náuseas, ânsia de vômito... Quase voo em cima dela e peço: “Moça, pelo amor de Deus, mastigue em silêncio, feito gente!” Não tenho muitas neuras, mas abomino mastigado de porco, com sonoridade de rapper[1].

Entrou um casal. A garota era 50%. Parecia toda pela metade. Baixinha. Loirinha. Acanhadinha... O parceiro era típico brutamonte. A cabeça do marmanjo inspirara um dos personagens do seriado Simpsons, por certo. Sentaram. O cara ensaiou algumas gracinhas. Em cheio, acertou o bom humor da minha caçula. De repente, eu me vejo assistindo a um diálogo fervoroso entre minha garota de sete anos e o comparsa. Eles sorriam. Ele contava aquelas piadinhas de fim de tarde... As luzes se apagam, iniciando-se os trailers – foi complicado explicar para minha filha que era hora de encerrar o papo com o amiguinho, mas deu tudo certo.

No segundo trailer minha atenção foi desviada com a chegada de três mocinhas. Para ser teenager[2] não basta existir, tem mesmo é que aparecer! As três, fazendo jus ao carma, além do atraso, tinham que tirar a atenção dos demais presentes. Eram três belos exemplares de mulher, isso é verdade, e estavam perdoadas, temporariamente.

Vampiros. Cenas de amor juvenil. Sangue! Na cena em que a garota se cortou, pus meus instintos de homem pra fora e literalmente eu me espalhei na poltrona. Difícil explicar a reação ulterior, mas me veio uma vontade quase incontrolável de liberar os lastros do esfíncter e soltar um pum! Imediatamente, num perfeito ato reflexo, tranquei a saída. Li num livro de Biologia que fagocitose é a mastigação de coisas sólidas; pinocitose, continuando o raciocínio, seria digestão de matéria orgânica líquida... E movimentos peristálticos, por sua vez, seriam movimentos involuntários que empurram os alimentos... Meu corpo naquele momento era pura Biologia metabólica. Apesar de ignorar como se chama esse processo quando o que se move é puro ar, senti, ao fechar o fiofó, tremendo peristaltismo ascendente. Se não fecho a boca, teria arrotado merda pura! Que sufoco! Eu suava.

O cinema estava lotado.

Como as três amigas se sentiriam ao sorverem ar quente em ascensão enxertado de derivados de enxofre impregnando-lhe as narinas? Será que se entreolhariam e soltariam a sentença marcante desses momentos tão íntimos do homem e da mulher, perguntando-se, mutuamente: “Mulher, foi você?”. Melhor não arriscar.

Ainda com a mão à boca, tampando sei lá o que – tenho certeza que agi novamente por preciosismo e instinto – resolvi ir ao banheiro. Perdi bons quinze minutos do filme, mas estava feliz, aliviado!

Confuso pela mudança entre o claro do toalete e o escurinho do cinema, retorno ao meu assento de origem quase tateando. Achei minha poltrona. Sentei. Sorri para minha esposa, sem graça – eu sem graça, tá! Minha filha, pra variar, teve que avisar a todos do cinema que eu havia chegado: “Estava no banheiro, era papai!”. A resposta foi discretíssima. Acenei com a cabeça e nada mais. Para meu desespero, dei de cara com as três amigas sorrindo e olhando pra mim!

Tentei disfarçar as gotas de suor que me escapavam pela face. Não dava a mínima para o que pensavam de mim. Dispus-me a me concentrar no filme. Cena de beijo; quem me beijava, ardentemente, eram as pregas do fiofó, ardidas e queimando. Senti o prenúncio... Alívio! Já sem escrúpulos, liberei um daqueles flatos quentes que saem rasgando tudo e que queimam temporariamente até a alma do infeliz que os criou. As mocinhas pareceram incomodadas. Esperei alguma manifestação do público mais próximo – minha esposa até ensaiou um “Homem, pelo amor de Deus!”... Mas na tela, a não mais que três minutos do final do filme, tudo fica escuro aos poucos. Fantasia? Alucinação? Para desespero dos presentes, a fita pareceu queimar e o homem do rolo (cineastas, ajudem!). O homem do rolo abriu uma portinha e lá de cima gritou:

– Deu pane aqui! Preciso consertar. Vocês vão esperar ou querem senha?

Optamos pela senha e, na tarde seguinte, retornamos para assistir ao filme Avatar – e que os deuses do paraíso desçam e me ajudem a não me transformar novamente em peristaltismos durante a sessão.

Crato-CE, 29 de dezembro de 2009.

01h32min

[1] Rap (em inglês, também conhecido como emceeing) é um discurso rítmico com rimas e poesias, que surgiu no final do século XX entre as comunidades negras dos Estados Unidos. É um dos cinco pilares fundamentais da cultura hip hop, de modo que se chame metonimicamente (e de forma imprecisa) hip hop. Pode ser interpretado à cappella bem como com um som musical de fundo, chamado beatbox. Os cantores de rap são conhecidos como rappers ou MCs, abreviatura para mestre de cerimônias.

[2] Adolescente

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 23/10/2012
Código do texto: T3948123
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