.:. Que fique entre nós .:.

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Não bastassem os contratempos normais da vida a dois, ainda tenho que aturar as interferências de outra pessoa, na intimidade de nossa cama. Calma! Pensamentos aparentemente óbvios demais atrapalham, às vezes. Eu explico.

Considero-me veterano no casamento. Isso mesmo! Depois de vários conflitos na seara marido versus mulher, mantivemo-nos firmes e estamos na iminência de completar duas décadas, dois decênios – tudo iniciado no dia do “fico”, perdão, no dia do “sim!”. Culpa do senhor padre, portanto!

Quando encontro pessoas na rua, ou leio em jornais ou em revistas, ou, ainda, quando vasculho pelas redes sociais, lá está ele, o fico: “ele é meu “ficante””, “estamos ficando”, “foi apenas um fica”... Pior que o estado do fica é o alvoroço que se instala no período pré-carnavalesco quando as moçoilas ousadas, as senhoras e, mais recentemente, as vovós, asseveram, orgulhosas, o atual estado civil: “esperando o carnaval”.

Para alguns pais atônitos, o “fica” traduz-se em dar beijinhos inócuos, beirando os abraços não mais afoitos; na mente de meninas precavidas, pode ser algo similar; para eles, os meninos, seria qualquer coisa diferente do já dito – eles se exasperam no entendimento e “ficar” seria, por exemplo, você sabe, né?

Vendo a expressão ficar e suas variantes sob a ótica dos meninos, como entenderíamos, hoje, a declaração de D. Pedro I, ao abrirmos um jornal com a manchete: O imperador, às margens do rio Ipiranga, declarou: “Diga ao povo que fico!”. Nossa! Seria um Deus-nos-acuda... As revistas criariam ou tentariam criar, de imediato, o perfil do “ficante". Surgiriam as possibilidades: talvez o negro bigodudo da cavalaria, aquele com notórios e patentes atributos cavalares; sairia no tabloide “Fofocas News”: “Aríete é o dono da espada que fere o imperador!”; no noticiário do jornal “Os Tesouras”, a repórter Nehnão asseguraria que o imperador, em função das raízes europeias, gostava de peles alvas, com pouca melanina e que, em razão da sensibilidade, preferia os espadins às espadas... O povo entraria em polvorosa! Estaria o imperador ficando louco?

O tempo passou e persistiram, ventos afora, o contexto e a pompa da cena que invadiu o imaginário popular: o cavalo, o rio, a espada, e a voz retumbante: “Eu fico!”. Quem diria – “Ficar” não é tão moderno!

.:. #.:. Ni .:. # .:.

Esqueçamos o imperador – as ausências devem ser respeitadas – e nos volvamos para o que me aflige, insistentemente, em todas as minhas noites recentes.

Os filhos crescem, é verdade – e o óbvio parece novamente enganar.

Aos nove anos, minha caçula resolveu voltar a dormir conosco. Sem aviso prévio, nem outro prenúncio qualquer, ela entrou no quarto, deitou e dormiu. Detalhe: entre mim e a mãe dela. Achei lindo no primeiro dia e até comentei:

– Nosso bebezinho quer dormir aqui, mamãe!

Mulher sempre tem o tal do sexto sentido “antenado” e na minha casa não poderia ser diferente.

– Isso não vai dar certo! – Foi a resposta da minha esposa.

E não deu. Nos últimos seis meses estamos separados na própria cama! O bebezão, já quase adolescente, além de deitar em nossa cama, na cama do casal, exige ficar – olha o “ficar” novamente – entre nós dois! Se estamos cabeça-cabeça ela está no meio; se ousamos deitar cabeça-pé para tentar uma carícia, um na ponta do dedo do outro, ela se esparrama toda na cama... Quando deitamos atravessados, parecendo restos de pano, e liberamos para ela a quase totalidade do espaço, ela não dorme, perde o sono.

– Do jeito que está não dá para mais ficar! – Exclamou a minha esposa.

– Que você quer que eu faça?

– Coloque-a para dormir no quarto dela, ora!

– Tá bom, vou tentar.

Na hora de dormir.

– Bebezinho!

– Que é, pai?

– Vamos para sua cama, vamos? Papai leva você!

– Não, pai! É aqui que vou ficar!

Sem discussão. – Pensa o pai. Se ela disse, ponto final.

Nos últimos dois dias, estou escrevendo uma longa carta para além-mar, avisando ao raio que o parta, descendente do Imperador, que, gozação por gozação, da forma como está eu não fico!

– Sai para lá, pai! O senhor está me apertando! Mãe, largue o meu lençol!

– Vou dormir na sala! – decide o pai.

– E eu no quarto de hóspedes! – responde a mãe, levantando-se da cama.

– E eu fico aqui sozinha, é? É assim, mãe? É assim, pai?

Crato-CE, 11 de fevereiro de 2012.

22h04min

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 22/10/2012
Código do texto: T3946860
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