Ocorrencias de trabalho
 

Olhando a tela do computador percebo o quanto ficamos dependentes da internet.  Por causa de problemas técnicos na rede fiquei à toa à espera de soluções. Meu trabalho só poderá ser realizado depois que sanarem o problema, e a espera me leva a pensar nos trabalhos que já executei enquanto serviço público.

Os percalços enfrentados diariamente, as dificuldades para uma boa oferta de trabalho com qualidade, tudo veio na memória, porque naqueles tempos o que fazia não dependia de internet. Dependia de suar a camisa, correr atrás de recursos materiais para alcançar os objetivos. Tantas vezes meti os pés pelas mãos ao tentar resolver problemas que não eram de minha alçada. Já exerci funções de secretária executiva, setoriais de pessoal e tantas outras atividades desempenhadas, mas o que deixou marcas profundas e nunca superadas foi quando aceitei o cargo de administradora do Centro de Internação para Menores Infratores.
Era um Centro de Medidas Sócio-Educativas.

Céus! Vivi e vi cada situação naquele lugar; injustiças, violências, descasos, prevaricações, corrupções. Nunca me esqueço do dia em que um adolescente foi atingido na altura do peito por uma estocada, agravante cometido por outro interno do Centro. A sirene tocou e todos correram para ver o ocorrido e justamente no momento em que eu estava realizando vistorias na parte hidráulica dos banheiros dos alojamentos e na saída de um deles, vi quando o jovem veio em minha direção, cambaleando e pedindo ajuda, caiu em minha frente. Enquanto a direção ligava pedindo ambulância e os policiais detinham o agressor, me ajoelhei e apoiei a cabeça dele em meu colo e com uma camisa que alguém tinha me dado fiquei pressionando o ferimento que jorrava sangue aos borbotões. Ele me olhava pedindo para não deixá-lo morrer. Não sei onde arranjei tanta coragem para ficar ali, confortando e dando esperança. Sentia meu corpo tremulo e o coração tão acelerado que me dificultava respirar. Eu vi exatamente o momento que a vida deixou aquele corpo e chorei, chorei muito. Fiquei letárgica, ouvindo os burburinhos que pareciam vir de muito longe. Não conseguia ver nada a não ser os olhos sem vida fixados em meu rosto. Alguém deu uma tapinha no meu ombro dizendo; - Tá chorando por causa de bandido? Agradece, foi mais um que se foi - Fiquei calada diante disso, a pessoa jamais entenderia que não era pelo infrator que eu chorava, era pela vida; por não ter podido fazer nada para que ela continuasse naquele corpo; chorava pela vida que não foi aproveitada como deveria; pela descontinuidade da esperança, uma vez que aquele mesmo jovem uns dias atrás havia me confessado que ainda iria sair de lá pela porta da frente e que daria a volta por cima; que ele “estava por conta (sozinho) no mundo, mas que um vizinho comerciante já lhe havia prometido emprego quando terminasse de cumprir a medida”. Passei noites e noites sem dormir com a cena passeando em minha cabeça.

Aquelas agressões com “arma branca” eram quase rotina no Centro. Os internos conseguiam os objetos negociando na maioria das vezes com os próprios funcionários. Não era diferente das grandes penitenciarias espalhadas pelo Brasil, onde se negocia facilmente a entrada de drogas, bebidas, celulares e até armas. Alguns eram lesionados por rixas e até por não aceitar as ordens de um ‘comandante’ que dava as cartas. Até aquele dia não havia tido vítima fatal e a direção junto com o corpo técnico tinham reuniões em cima de reuniões com a intenção de solucionar o problema.

Mas dentre tantas mazelas sempre havia aqueles casos que nos davam alegria. Como a história de um sócio-educando que havia conseguido bolsa de trabalho na Procuradoria do Estado. Ele trabalhava pela manhã e a tarde estudava, retornando ao Centro somente à noite para dormir. Elizeu havia cometido latrocínio aos dezessete anos, mas só foi apreendido quando já tinha dezenove e já estava quase para completar 21 anos, com isso o processo que tinha contra si seria arquivado. Quando isso ocorresse, a bolsa de trabalho também expiraria. Ele andava triste com isso, pois pensava em ficar sem o emprego. Apesar do ato infracional cometido ele vinha dando mostras de constantes mudanças no comportamento, pois fazia todos os cursos que lhe eram ofertados, tirava boas notas nas avaliações escolares e também havia ganhado a confiança diante de que saia e voltava sem escolta para as tarefas externas e nunca tinha atentado fuga. Quando ele fez aniversário finalmente foi liberado do centro. Alguns dias depois ficamos sabendo que Elizeu continuava trabalhando na Procuradoria mediante contrato com terceirizados. Pelo menos em mim a notícia veio como alento. Penso que existem os erros, mesmo aqueles graves como quando se privam outros de viver e nada trará de volta a vítima. Mas se Elizeu não tivesse tido outra chance, seria outra vida que também seria perdida.

Uns dias atrás enquanto caminhava pela cidade encontrei Elizeu. Hoje a história dele é diferente, pois se formou em Direito, é casado e já tem um casal de filhos. Quem o vê jamais dirá que foi interno de um Centro de Medidas Sócio-Educativas.  

 
MarySSantos
Enviado por MarySSantos em 08/10/2012
Reeditado em 23/11/2012
Código do texto: T3922546
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