O poeta e sua musa e sua terra

O salão brilha não só pelos vários lustres espalhados.

Nessa segunda metade do século dezoito, naquele solar de espaçosas janelas ricamente adornadas por pesados reposteiros de veludo, no Largo dos Amores, naquela cidade, a fina flor da sociedade é recebida para uma noite de danças, recitais e outras alegrias similares. A cada carruagem que chega, sons de risos abafados, rostos discretamente velados pelos artísticos leques e redobrada alegria de jovens que tem nesses eventos sua possibilidades de verem o ser amado.

Pequenos grupos de moças e vigilantes mães pra coibir qualquer tentativa de corte mais imprudente. Uma grande mesa num salão contíguo dispõe sucos, ponches, gelados e outras delicadezas para as senhoras se refrescarem entre uma dança e outra. Em outro salão os homens conversam entre nuvens de charutos importados enquanto negros serviçais bem vestidos para a ocasião, passam com bandejas de licores, xerez e porto.

A orquestra toca e na noite enluarada entrevista pelas largas porta-janelas convida os enamorados que suspiram, diante da possibilidade de uma valsa a mais.

De repente um frisson no salão. É ele. Meu Deus, ele aqui? Sim, é ele.

O ruídos das conversas aumenta, um leve mal-estar perpassa alguns grupos, mas a anfitrião, uma respeitada dama da sociedade, viúva riquíssima e mãe de filhos adultos adianta-se, com um sorriso para recebê-lo, tirando dos mais resistentes qualquer possibilidade de uma atitude de desagrado diante daquela aparição. Ela estica a mão de grandes anéis e as pesadas alianças de sua viuvez, numa atitude não só de elegância social, mas de perfeita simpatia para com ele.

- Caro poeta, que alegria revê-lo depois dessa tão pronunciada ausência.

- Senhora, minha alegria é estar diante de tão preciosa amiga. – Ele curva-se numa elegante mesura, enquanto beija-lhe a mão. Ergue os olhos, mas seu olhar inquieto, percorrendo o salão não passa á ela despercebido. Sabe o que ele procura e tomando-lhe o braço, vai de grupo em grupo, apresentando-o aos poucos que não o conhecem. Evita o grupo onde está quem ele procura, afinal não sabe se ele já está a par das noticias e quer poupar-lhe um evento desagradável e um constrangimento no seu salão. Sabe-o correto, discreto, elegante, mas as más línguas não o poupariam se vissem qualquer tentativa de aproximação DELA.

Ele passa ao salão masculino e um dos filhos da anfitriã o cumprimenta com simpatia, mas ele continua alheio, como que esperando. Aproxima-se da mesa de chás e lanches, fingindo interesse em comida. Pega um prato e de repente, seus sentidos avisam-no de que ela está ali. Olha calmamente para o lado e ELA está bem li, ao alcance de um toque com seu perfume tão conhecido. Treme, cofia a barba, faz uma delicada mesura, percebendo a alegria e espanto nos olhos dela e a palidez no seu rosto. Sabe que outros já viram aquela troca de olhares e acha mais natural aproximar-se e falar-lhe. Vê nela a emoção que a consome como sente no seu propio peito e sabe que é agora que vai falar-lhe.

- Senhora, que alegria – fala ,olhando para a comida temendo ser traído pelo amor que o transtorna. Ela só olha, num meio sorriso comedido e nada fala. Ele continua o teatro e ela sente que precisa fazer o mesmo. Falam enquanto buscam quitutes, de maneira que possa parecer aos de fora, uma simples conversa social. Ele precisa de mais e mostra-lhe uma das janelas na outra sala. Vai pra lá. Ela continua a pegra comida e sai em direção oposta, encaminhando0se depois para aquele lugar vazio.

Ele tenta tomar-lhe a mão e ele retrocede assustada. Ele diz-lhe que depois de muito pensar e sofrer, quer arriscar. Vai novamente pedi-la aos seus pais e se eles não aceitarem, resolve que deverão ir adiante e casar sem aquele consentimento, como antes ela concordara. Ela está muda, mas ele percebe o transtorno nos seus olhos, que agora nadam em lágrimas.

- A senhora mesma concordou. Sei que parece-lhe penoso deixar os seus, mas podemos casar na Corte e morar em Paris. A senhora sabe que não disponho de bens, mas estou equilibrado o suficiente...

Ela engole o soluço e ele se espanta.

- A senhora mudou de ideia, teme deixar seu aconchego, ser deserdada?

- O senhor sabe que isso nada me prenderia se o senhor tivesse insistido pra levarmos adiante essa luta com meus pais, mas...

- Então, eu voltei por isso. Temia arrasta-la pra uma vida privada de seus luxos, mas meu coração me fez voltar e agora lhe imploro que me perdoe isso...

Ela chora silenciosamente e ele fica angustiado sem saber o que dizer. Ela olha com olhos doridos e diz:

- Eu teria lhe esperado, eu teria ido se o senhor tivesse me levado. Não me importo com a deserção mas o senhor foi embora...

- Eu voltei, minha amada e creio pela sua dor que não se importa de dividir uma vida pobre comigo. Falarei com seus pais.

Ela olha pra ele com o olhar desamparado e com o canto dos olhos ele vê surgir numa das portas a anfitriã, que permanece parada, esperando o desfecho.

Ela mostra-lhe a mão com a grossa aliança. Ele sente faltar-lho o sangue, o chão, a vida.

- Senhora...

- Assim que o senhor embarcou, eles decidiram meu casamento com Senhor J. Estou casada há seis meses. Ninguém lhe contou?

Ele olha desolado pra sua anfitriã que aproximou-se nesse momento e ela aproveita pra fugir com os olhos lavados de lágrimas. Ele a retém pela manga da blusa.

A dor é uma explosão rasgando seu peito e dói mais porque ele sabe que ela sofre como ele e aquele casamento foi uma imposição paterna. O único que lhe ocorre é pedir perdão pela dor que lhe causou e pelo egoísmo do amor ferido que o fez fugir em vez de lutar. São dois infelizes agora e ele daria qualquer coisa pra que ela não estivesse sofrendo.

Sai da cidade. Vai pra Paris, passam-se os anos, ele casa, morre-lhe um filho e um dia ele desolado, retorna á terra. Na baía, de onde se avista o rio e aquele largo, o navio naufraga. Ele morre vendo a cidade, as palmeiras e sabe que ali próximo as palmeiras está o solar que viu nascer seus amores e dores. Ela está lá, irremediavelmente pres