HORÁRIO DE INVERNO
O texto a seguir foi extraído de “Crônicas da Vida Inteira”, livro inédito sobre fatos da minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.
HORÁRIO DE INVERNO
De uns anos pra cá, o Governo vem impondo a todos os brasileiros a troca anual de horário, ao adotar o tal horário de verão. Dizem que é pra economizar energia elétrica. Sei lá se é ou se não é. Só sei que eu, quando menino, impus ao menos por alguns dias um horário de inverno pra toda a vizinhança, e não foi pra economizar energia não. Foi por preguiça mesmo. Ou melhor, foi pra economizar minhas energias.
Não sei se a ideia foi dele próprio ou de alguém querendo se passar por beato. O Vigário, certa feita, surpreendeu os ouvintes no meio do sermão com uma novidade após tê-los exortado a rezarem muito à Santíssima Virgem Maria, o que era pedido por Ela própria aos três pastorezinhos de Fátima.
— Principalmente o ângelus três vezes ao dia: às seis da manhã, ao meio-dia e às seis da tarde — concluiu o vigário.
Um dos fiéis, sem papas na língua nem vergonha de expor sua ignorância, levantou-se de braço erguido lá no meio da turbamulta.
— Mas, Seu Vigaro, o que que é memo esse tar de an... ângelos que o senhô falô aí? — Perguntou o homem entre os olhares de aprovação de uns e de reprovação de outros.
— Ah, foi muito bom o senhor ter perguntado. Eu pensei que soubessem... — admirou-se o Padre. — O ângelus é o mesmo que o anjo-do-senhor, que todos já conhecem — explicou bondosamente.
— Ah, bom! — Foi a exclamação de compreensão de muitos, à qual o padre emendou:
— Para que ninguém se esqueça, nestes três horários, o sino vai dar três toques curtos, repetidos em intervalos nos quais se rezam as ave-marias, e uma chamada longa durante o tempo em que se reza o oremos — explicou. — Então, ao ouvirem o sino, já sabem: estejam onde estiverem: na cama, na roça ou em qualquer outro lugar, rezem o ângelus ou o anjo-do-senhor, com bastante devoção, tanto os adultos quanto as crianças — aconselhou e emendou:
— Olhando-se pelo lado prático, o toque do sino vai alertá-los das horas de levantarem-se para o novo dia, de irem almoçar e de descansarem no cair da noite, uma vez que a maioria não possui relógio, e mesmo os que o possuem não o levam para o serviço — comentou, determinando em seguida, com o dedo apontado pra mim:
— E quem vai ficar encarregado de tocar o sino para vocês nestes três horários é o nosso coroinha, que mora ali bem pertinho da igreja.
Eu fiquei todo orgulhoso com a incumbência recebida. Era eu, afinal, quem iria fazer todos se lembrarem de rezar. Senti-me elevado ao nível de gente grande. Meus amiguinhos, de suas camas, iriam saber que era eu quem estava lá na igreja tocando o sino. Lembro até que alguns deles cochicharam entre si, olhando-me com ares de inveja. Já era eu, aliás, quem, todo garboso nas minhas vestes de coroinha, atravessava a nave da capelinha já cheia de fiéis, pra ir bater a última chamada pro início da missa em todas as vezes que o vigário visitava o lugar.
Nos primeiros dias, eu nem precisava que minha mãe me chamasse. Ao primeiro som do despertador, eu saía correndo pra igreja. Mas, à medida que a coisa ia deixando de ser novidade, passei a não ouvir mais o despertar do relógio, precisando que minha mãe me chamasse e às vezes me sacudisse. Quando o inverno chegou, então... Que sacrifício! Deixar o quentinho da cama e sair correndo pra igreja no escuro, com os olhos ainda cheios de sono e naquele frio de doer, lembrando que os colegas ainda dormiam a sono solto!... "Ah, se eu pudesse dar um jeito de rebentar esta corda!", pensava com raiva, enquanto me dependurava nela a fim de fazer o bronze soar ao fim das ave-marias que eu rezava apressado, com o pensamento na cama gostosa a me esperar de volta.
Embora já não conseguisse mais vê-lo no lusco fusco, eu me lembrei de que a corda, lá no alto, apresentava um metro e tanto meio gasto de tanto roçar nas bordas do furo estreito por onde atravessava o forro de madeira que impedia às corujas e andorinhas de irem deixar suas marcas desagradáveis pelo interior da capela.
"Poxa, não podia esta corda rebentar de uma vez!", desejei. "E se eu cortasse!?..." perguntei-me. "Iriam descobrir que foi cortada e não gasta", retruquei a mim mesmo. "Então gaste-a, seu tanso!" sugeriu-me a voz de meu anjo mau dentro de mim.
Pra isso, eu teria que arranjar um instrumento áspero, pra que o serviço não demorasse muito. Já estava escurecendo, e muito tarde da noite eu não me arriscaria a ficar lá dentro sozinho. Diziam que aparecia assombração. O cemitério ficava logo ali atrás, colado à capela. Eu, hein!...
Pensei, pensei... Em casa, no rancho do forno, tínhamos um facão velho, de corte todo irregular, cheio de dentes, de tanto se arremetê-lo contra pregos e arames. Corri a procurá-lo, mas qual! Não houve jeito de encontrá-lo. Nisso dei com o velho ralador já em desuso pendurado num prego à parede. Peguei-o. Era muito grande. Poderiam ver-me levando-o pra igreja e iriam fazer perguntas... Além disso, era muito pesado pra esfregá-lo na corda. Diacho! Fiquei indeciso. Nisso, vi a brossa de escovar o pêlo dos cavalos. Peguei-a, analisei-a, esfregando-a no braço. Com mais força, teria me arranhado. Legal!
Num já, eu estava na igreja. Como chegar lá no alto? Do piso do coro até o forro da torre, onde era o meio do trecho puído da corda, dava uns três metros ou mais. Escada não havia por ali. Tentei subir calçando as costas contra a parede e os pés contra a coluna da torre, mas o vão era muito largo. Se minhas pernas fossem uns quatro dedos mais compridas, daria certo. Por sorte, imaginação não me faltava. Lembrei-me dos tamancos de minha irmã e fui correndo buscá-los. As bases de madeira tinham os saltos bem altos, exatamente como eu precisava.
Calcei-os e, segurando a brossa nos dentes, lá fui eu torre acima, com perigo de cair e machucar-me feio. Levei bem uma meia hora ali esfregando as serrilhas da brossa contra a corda. Quase que o cansaço me fez desistir. As pernas tremiam e teimavam em querer dobrar-se pelo esforço continuado em suster-me espremido lá no alto. Quando me vi novamente embaixo, a tremura nas pernas era tamanha, que eu não consegui ficar de pé. Deitei-me de comprido sobre o banco enorme e fiquei longamente a pensar. "Valeu a pena tanto esforço por uma ou duas manhãs de sossego?" Com certeza, os homens viriam repor uma corda nova no sino, se não fosse no dia seguinte, seria no outro, e eu teria que continuar meu triste ofício de acordar os outros pra reza.
Em casa mereci crédito ao anunciar que a corda havia rebentado. É claro que eu disfarcei meu contentamento, demonstrando pesar e preocupação com as ave-marias da manhã seguinte.
— É... eu vi, esses dias, que ela já estava bastante gasta — confirmou uma das minhas irmãs, tranquilizando-me.
— Também! O tempo que faz...! Eu acho que aquela corda ainda é a primeira.
Com certeza, na manhã seguinte, toda a redondeza acordou mais tarde, e as ave-marias ficaram esquecidas por muita gente.
Quando eu me preparava pra ir pra escola, lembrei-me da brossa. Tê-la-ia devolvido certinho ao lugar? Tive que ir verificar. Pois não é que, na pressa, eu a tinha deixado sobre o borralho do forno!?
Bem diz o ditado: que "o diabo ajuda a fazer, mas não ajuda a esconder". Quando eu cheguei de volta da escola, a surpresa me esperava. E não foi nada agradável. Papai veio ao meu encontro ao pé da escada, brandindo o toco da corda.
— Como foi que subiste lá em cima pra cortar a corda do sino, seu sem-vergonha!? — Foi logo perguntando e nem esperou a resposta que ele já tinha. Meu crime tinha sido descoberto. O medo e a pressa de sair da igreja, fizeram-me esquecer o par de tamancos da mana, e este detalhe me denunciou. Levei uma surra daquelas! E a arma do castigo foi a própria corda partida.
— Agora, vá tocar o sino, que já 'tá passando da hora! — Ordenou ele ainda furioso, e eu saí chorando e me torcendo de dor rumo à igreja. Bem feito, pra eu aprender!
Mesmo assim, eu não aprendi. Passei os dias seguintes maquinando outra maneira, que não me resultasse em nova surra e me livrasse do ofício, mas não tinha jeito. Não podia um pica-pau vir roer a armação... Besteira! Por que o pica-pau viria furar esta madeira velha!? Se tivesse cupim... "Ah, já sei!", lembrei-me depois de muito pensar. "O despertador! É ele quem acorda a mamãe...".
Na noite daquele mesmo dia, fui até o barulhento, que ficava sempre à cabeceira dela, e atrasei-o dez minutos, tornando a repetir a operação nas duas noites seguintes.
"Beleza! Meia hora a mais de sono", eu exultava pelo caminho da escola.
Foi, porém, de curta duração a minha alegria. No terceiro ou quarto dia, ao chegar, com uma turminha de retardatários como eu, a professora já tinha feito a chamada e passava as tarefas aos alunos. Ao ouvir-nos pedindo licença pra entrar, ela veio receber-nos à porta com as mãos nos quadris e de cara feia.
— O que é que está acontecendo com vocês, crianças? Estão chegando cada dia mais atrasados às aulas.
— É o sino, professora, que 'tá batendo muito tarde — explicou um dos recém-chegados.
— É verdade sim, professora. Eu também quase que me atrasei — confirmou uma colega lá de dentro da sala.
— O sineiro dorme mais que a cama, professora — pilheriou um dos colegas, o mesmo que havia cochichado na igreja, e o resultado foi uma gargalhada geral.
— É verdade — concordou a professora depois de silenciar a turma. — Eu já estava à mesa quando ouvi o sino bater. Por isso, hoje vocês podem entrar — concedeu e voltou-se pra mim, sabendo que o sineiro era eu. — Então tu deves pedir pra teus pais acertarem o despertador. E se o atraso se repetir amanhã, eu vou falar com eles — ralhou e ameaçou com o indicador no meu nariz.
Eu já tinha ouvido dizer que a alegria do pobre dura pouco e estava vendo que era verdade. O que é que eu iria fazer pra consertar o mal-feito? O jeito seria adiantar o maldito despertador novamente.
Não deu tempo, porém. Quando cheguei em casa, o almoço já estava à mesa, como de costume, e lá pelas tantas, meu pai se lembrou:
— Eu não sei o que é que 'tá acontecendo com o despertador. Começou a atrasar feito doido. Meia hora de uns dias pra cá.
"Como é que o Senhor sabe?" A pergunta traidora quase me saiu. Cheguei mesmo a engolir a primeira sílaba. Foi quando me lembrei a tempo, que ele tinha um relógio de algibeira.
Naquele tempo, os relógios de pulso eram ainda muito raros, e os homens mais velhos traziam os seus, de ouro ou de prata, na algibeira da calça ou do colete, da qual pendia com ostentação, como símbolo de certo poderio e riqueza, uma corrente de um ou do outro metal precioso.
Não era o caso de meu pai, que tendo o seu em metal barato, só um sujinho de prata, como dizia, raramente saía com ele, deixando-o guardado no escaninho de sua escrivaninha de quarto. Por isso, pra meu azar ou minha sorte, nem me lembrei de atrasá-lo também. O jeito foi conformar-me no ofício de sineiro e ainda considerar-me feliz se escapasse de nova corrigenda, da qual ainda não estava livre caso meu pai estranhasse o fato de não se repetir o atraso no despertador.