Tingüi revisited 


Chama-se Tingüi o rio que passa no meu bairro, rio Tingüi. 

Vem de não sei onde, um fiapo d’água, praticamente um valão com pinta de canal, arrastando-se quase, com inelutável preguiça republicana ou macunaímica, sei lá. Como, secundariamente, faz parte do sistema de tratamento de águas do estado, cuja estação fica bem distante de Marechal Hermes, deve levar séculos até que este paciente cronista possa beber, na hora do almoço, um copo de rio Tingüi filtrado, na mais categórica e clamorosa refutação de Heráclito. Quantos de nossos moradores terão conhecimento desta proeza filosófica, depois de tantos milênios escoados? 

Falando nisso, lembro-me de minha primeira namorada, uma índia carajá criada à beira do Araguaia até os sete anos de idade. Adotada por uma enfermeira, veio morar entre nós por volta de 1968, quando a conheci. Num de nossos passeios pelo bairro, uma novidade ainda para ela, tive a infeliz idéia de sugerir: “Vamos pela rua do rio.” E fomos. Coitado do meu pobre Tingüi, a indiazinha caiu na gargalhada, mal podendo acreditar em que chamássemos de rio aquela vala suja — no entanto sem maldade, pura estupefação de quem, afinal, nascera na maior ilha fluvial do mundo, com suas praias e atracadouros. 

Confesso que na hora fiquei bastante chateado, mas Iaminuã tinha razão: no meu rio cara-pálida não atracava nem barquinho de papel. 


[29.12.2005]