DOMINICAL BLUES (homilia poética)
Acordar com chuva, domingo de verão, ouvindo Pink Floyd pode te fazer entrar em um transe do qual voce não queira mais voltar. As igrejas agora, nessa hora, estão lotadas de lamentos. Os parques estão vazios, as gramas não servirão de esteira nessa manhã molhada. O sol faz suas coisas às escondidas, por trás das nuvens. O homem que puxa uma carroça abre a primeira garrafa; os pardais sacodem-se nos fios de energia presos aos postes, como nas festas juninas as bandeirinhas ficam.
Da sacristia um poema antigo divorcia-se do papel e da tinta, cobre o terço nas mãos do santo de braços abertos; a criança no colo da mãe abençoa o poema que purifica o ar e comunga com os anjos em uma festa alegre. O homem sentado na esquina, sob a marquise do edifício apenas olha quando um fiapo de sol faz cócegas em seus pés sem sapatos. Dá um leve sorriso e levanta o rosto para o alto.
As lojas vão sendo abertas aos poucos, na medida do cansaço de quem abre os cadeados e levanta as portas. Eu nunca usei óculos, pra que usar óculos? Não, eu não quero nunca ter que usar óculos! Stevie Wonder não usa óculos de lente! Para que então eu deveria usar óculos de lente? Eu não toco piano, não toco instrumento algum. Eu não preciso de óculos para escrever, só de um pouco de entendimento, de sensibilidade e de silêncio. Eu, definitivamente, não preciso de óculos para fazer poesia.
Não quero sair do transe: Mother, do you think they'll drop the bomb? Mother, do you think they'll like this song? Essas respostas estarão disponíveis em um dia qualquer, quando voce se julgar suficiente em fazer as mesmas perguntas.
Sei agora que posso levantar e vestir o manto do homem correto que não passa por ninguém sem desejar bom dia; que esconde um mendigo cabeludo dentro da garrafa do homem que puxa a carroça; que não vai à missa, mas cuida de plantas e de animais e estende as mãos sempre que ouve um “por favor”. Preciso tocar gaita em cima da montanha depois da leitura do antigo testamento e antes do credo, uma homilia poética ao som de um blues domingueiro. Amém.