MAIS CINQUENTA
O texto abaixo é sequência de VIROU A MÃO e foi extraído de CRÔNICAS DA VIDA INTEIRA, livro inédito sobre fatos de minha vida, adaptado para o Recanto das Letras
MAIS CINQUENTA
A cada dois ou três meses, o vigário vinha visitar a capela do lugar. Eram, então, três ou quatro dias de imenso regozijo pra mim. Eu era o coroinha e gostava de usar aquela saia vermelha e a sobrepeliz branca e rendada. Sentia-me superior aos outros meninos por saber aquelas rezas em latim. Coisas de criança.
Era eu quem carregava as malas do padre pra sacristia, cuidava de seu cavalo, dando-lhe água e ração, levando-o pro potreiro e trazendo-o de volta, era eu quem ia chamar o padre pras refeições que minha mãe lhe servia lá em casa, era, enfim, o seu braço direito, como ele dizia.
Embora eu achasse que Deus já me tivesse perdoado o pecado de ter trocado as mãos do Senhor Bom Jesus, uma vez que Ele tinha me ajudado a mantê-lo em segredo, minha consciência me ordenava a acusá-lo em Confissão quando o vigário viesse. Pela qualificação de meu pai, cada dia mais eu chegava à conclusão de que o pecado tinha sido muito feio mesmo. Muito ordinário era pra lá de bandido, de sacana, de sem-vergonha, e eu, no meu segredo de menino, me achava o maior dos pecadores. Cheguei a ter pesadelos horríveis, vendo-me no inferno. Como poderia eu continuar sendo o coroinha com a alma tão suja, sem confessar-me? Tinha que fazê-lo! Mas se o padre me expulsasse do confessionário sem dar-me a absolvição? Que vergonha! Todo mundo iria ficar sabendo... Não me confessar, entretanto, seria mais vergonhoso ainda. Que bonito o coroinha não comungar! Iriam falar pouco!...
O desejo de adiar pra sempre tal confissão fez-me sentir que os meses passassem rápidos. E o vigário chegou. Eu andava me esquivando dele como o diabo da cruz. Nem à Confissão das crianças compareci, como era meu costume ser um dos primeiros. Martelavam-me o medo e a dúvida. Se ele contasse depois aos meus pais, eu estaria frito. Seria uma surra daquelas!
No dia seguinte, mal eu entrei relutante na sacristia pra ajudá-lo na primeira missa, o padre levantou os olhos de seu breviário e chamou-me com ares de quem já sabia de tudo.
— Escuta, menino, o que é que está havendo contigo? Andas fugindo de mim... Nem te confessaste ontem... Que cara esquisita é essa? Fala! Não tenhas medo não. Pecado feio eu sei que não fizeste...
— O pior, é que eu fiz, padre. Um pecado muito feio. Tenho até medo que o senhor nem me perdoe — comecei como preâmbulo.
— Não te preocupes, meu filho. Se for mesmo um pecado muito feio como dizes, tens que confessar-te pra poderes receber a Santa Comunhão. Mas pode ser que aquilo que tu achas ser um pecado muito grande nem pecado seja. Conta, vamos ver... — insistiu o bom homem carinhosamente. — E nem precisas te ajoelhar — concedeu.
— Só se fechar a porta, padre. Pode alguém ouvir... — pedi antes de começar.
Quando eu pensava que o padre fosse me puxar as orelhas, me lançar tremenda excomunhão e expulsar-me dali pra fora, pra surpresa minha, ele explodiu numa estrondosa gargalhada, imaginando por certo, tal como eu havia achado engraçado, o santo de mãos trocadas e com o globo voltado pra baixo, como se estivesse brincando de ioiô.
— Tu és um pestinha mesmo! Quem iria imaginar isso de ti, hein!? — sorriu, tornando-se sério ao lembrar-se de que estava me confessando. — Agora te ajoelha pra receber a absolvição.
— Mas, padre, eu ainda não terminei. A dona Rita...
— O que é que tem a dona Rita?
— Ela quase morreu de susto. Estava no meio da reza — continuei cuidadoso, a fim de que ele soubesse que o caso tinha ficado em segredo e não viesse a dar com a língua nos dentes pra ninguém.
— Agora, vamos nos preparar, que já está passando da hora, seu moleque — apressou-se ele ao consultar o relógio depois de ter-me dado a absolvição.
Instantes depois, estávamos os dois, únicos senhores do meu segredo, ao pé do altar pra começar a missa.
Naqueles tempos, o padre celebrava de costas pro povo. Quando ele, depois de ter ido depositar o cálice sobre a mesa do altar, se voltou pra iniciar o Intróito, teve que sufocar outro acesso de riso ao dar com os olhos na estátua do Senhor Bom Jesus impassível lá no alto, com o globo na mão direita e a esquerda espalmada com se estivesse praticando malabarismo.
Nunca me senti tão leve como naquele instante. O pecado, que eu julgara cabeludo, nem mereceu penitência a cumprir. Se o padre esqueceu de dá-la, sorte minha! Eu já tinha me preparado psicologicamente pra rezar mais uns cinquenta padres-nossos e o mesmo tanto de ave-marias e glórias-ao-padre além dos que já tinha rezado. Olhei pro Senhor Bom Jesus e agradeci mais uma vez, jurando nunca mais bulir em santo algum.