Dormindo com a mulher-bomba


Meio sumido do meu sítio internético (www.galhodearruda.com), às voltas com a tradução de um romance francês de arrancar os pentelhos. Para ser mais preciso, um romance em forma de diário, marcando a estréia literária de Sandrine M. Bleauzur e intitulado Trompe l’oeil. Pelo visto, deve ganhar o mesmo título quando for lançado entre nós, possivelmente no segundo semestre de 2007, pois é uma grande metáfora de todo o enredo. Como sabemos, trompe l’oeil é termo técnico na pintura, com verbete no Aurélio e no Houaiss mas sem tradução satisfatória na língua portuguesa.

No entanto estranhei não existir na edição parisiense a mais escassa nota biográfica sobre a autora. Por ser estreante, é uma lacuna e tanto, pouco usual na categoria dos best-sellers. Sandrine deve ter exigido isso no contrato, temendo, quem sabe, desdobramentos ideológicos cuja pertinência não ficou muito clara para mim. Curioso, andei guglando a nova romancista e o título do volume, mas não encontrei nada.

Montei uma sinopse do livro para vocês, em primeira mão.

Uma professora de filosofia nos seus trinta e cinco anos, gostosa toda a vida (segundo a autora, “Marianne tinha os dedos magros e longos de intelectual boa de cama”), recém-descasada, sem filhos, resolve romper definitivamente com o passado e aluga um apartamento em Montparnasse. Já na primeira semana de prédio novo apaixona-se pelo seu vizinho de porta, um imigrante árabe cujo lar é um discreto ponto de encontro de outros árabes. Logo entenderemos que eles planejam um atentado de arromba contra o Museu do Louvre. Neta de argelinos, leitora voraz de Os justos, de Albert Camus, doida para trepar pelo resto da vida e esquecer de uma vez as pirocadas sem graça do ex-marido, Marianne deixa-se pouco a pouco seduzir pelas idéias do grupo terrorista e concorda em dar início a um longo e penoso período de aprendizado para transformar-se em mulher-bomba. Pano.

Dá o que pensar o discrepante jogo de referenciais livrescos entre autora e personagem. Enquanto esta última é leitora de Camus, a mulher que conta a sua história, essa desconhecida Sandrine M. Bleauzur, tem toda a pinta de admiradora incondicional de Danielle Steel, levando-nos a aturar (um tradutor não pode se dar o luxo de abandonar um livro desagradável e passar para outro) páginas e mais páginas de redação malcuidada e pedregosa, repleta de justificações, diálogos cheios e retóricos, além da frase sem brilho nem criatividade. Folheando Trompe l’oeil, Nelson Rodrigues pensaria duas vezes antes de declarar que é moleza escrever bem em francês.

Para finalizar, temos aí a construção psicológica de uma mulher-bomba ocidental, e nenhuma tensão no processo. Puro desperdício de um bom tema, de alarmante atualidade. Muita página de sexo sem limites (Marianne dá um show de putaria em cada um dos vinte e três capítulos do romance), muito drama de consciência diante da estátua de Balzac, ali perto de onde ela mora, muita discussão superficial sobre islamofobia, muito tiro, muita porrada, muito carro pegando fogo e voando pelos ares, e é tudo.

Tem o final, claro. Mas o final, como no samba cantado por Moreira da Silva, “é meio impróprio e eu não digo”.


[11.2.2007]