Um livro de Cecília

Coisas da liberdade, coisas de Bachô, haicais e rãs ploft-poéticas, coisas de um mundo engraçado, coisas infanto-peripatéticas de bosques e florestas, coisas de casas amáveis, coisas da arte de ouvir e olhar, e com isso sentir-se completamente feliz, coisas de camelô e canetas mágicas, coisas genealógicas, coisas audíveis lá fora no bairro de Humaitá, coisas de solidão e solandações, coisas das frágeis meninas dos hospitais, coisas de convalescentes sonhando, coisas da visitante pequenina, coisas de gente desaparecida, coisas de circo e seu inesperado final, coisas do tempo incerto, coisas de estranho encontro, coisas dos bem-te-vis de ontem, de hoje, de todos os tempos, coisas de Victor Hugo, coisas de uma quase entrevista com Faulkner, coisas de livrarias e livrinhos duendes, coisas de Dona Júlia (quem ainda se lembra de Júlia Lopes de Almeida?), coisas pictóricas de Guignard e sua estrela breve, coisas das chuvas com ou sem enchente, (trezentas ou trezentas e cinqüenta) coisas de Mário, coisas do gajo de muitos nomes (coisas do Grupo Fernando Pessoa, que o declamava no palco), coisas do amigo Drummond, coisas de Portinari e sua obsessiva dedicação ao trabalho, coisas milenaristas (quantas vezes o mundo já acabou?), coisas lunantes do poeta Li Po, coisas de tristeza, coisas da Semana Santa mineira, coisas de ovos de Páscoa, coisas do diário de D. Pedro II, coisas de eclipses lunares, coisas de relâmpagos e trovoadas, coisas de sábados vesperais, coisas da demografia carioca, coisas radiofônicas de Murilo Miranda, coisas quasímodas de sino e sono (coisas de insônia, também), coisas eólicas de compensações, coisas de sorrisos, coisas de escolher nossos sonhos, coisas de tristeza, ainda, coisas de incêndio e brinquedos perdidos, coisas de enfermeira egípcia, coisas de cronista abençoada.

Essa crônica-sumário tem sua explicação. Acabo de reler, desta vez em voz alta, Escolha o seu sonho, coletânea de crônicas radiofônicas de Cecília Meireles, todas transmitidas na primeira metade dos anos 1960 pelos programas Quadrante (Rádio Ministério da Educação e Cultura) e Vozes da Cidade (Rádio Roquette Pinto). A primeira edição do livro é de 1964, ano da morte da divina poeta, mas usei a vigésima primeira edição — Editora Record, Rio de Janeiro/São Paulo, 1998 —, com orelhas de Carlos Drummond de Andrade, que ouvia como poucos, sobretudo em se tratando da amiga particular e companheira de letras.

[29.4.2006]