Seu Chico.
Sabe eu tenho um amigo... Quer dizer, eu acho que é um amigo meu... Sou um tanto seletivo e criterioso pra definir os vínculos que estabelecem uma amizade, mas em tempos modernos algumas amizades já não possuem mais caráter presencial, tudo hoje é digital, virtual e o escambal. Mas porque mencionei esse amigo? Bom, eu estou um tanto perdido, não sei ao certo o que estou fazendo, mas sei que tem a ver com esse amigo, que me sugeriu outro dia que eu tentasse escrever uma crônica... É isso! Lembrei! Estou tentando escrever uma crônica e ao pensar nisso lembrei também de nunca ter lido uma crônica em que o cronista admitisse que não sabia escrever uma crônica, daí achei que devia iniciar escrevendo isso, já que na falta de talento ao escrever a originalidade sempre vem me prestar serviço.
Seu Chico, senhor de semblante sofrido, foi o personagem que eu elegi pra ser o tema dessa minha crônica. Eu o conheci assim tão despretensiosamente como comecei a escrever esse texto, era funcionário da cantina da faculdade onde estudo. Sabe, eu nunca dispensei grandes atenções ao seu Chico e não me acho um mal sujeito por isso. Eu o conhecia superficialmente devido a frequência cotidiana naquela cantina, mas mesmo superficialmente, eu como bom observador, me peguei algumas vezes analisando a figura do seu Chico, enquanto ele cabisbaixo recolhia os pratos, quase sempre calado, um sorriso apagado no rosto quando alguém o encarava de frente; econômico, mas educado na interação com as pessoas, parecia cansado... Algumas vezes eu pensei que ele não devia estar trabalhando, devido o avançado da idade. Outras vezes eu pensei que devia ser bom pra ele ter aquela atividade, pra reforçar sua utilidade, pra não entrar em depressão.
Sabe eu queria ter sabido um pouco mais sobre a história do seu Chico, queria ter sentado com ele e ouvido um monte de histórias que ele provavelmente tinha pra contar. Mas tudo que eu pude dizer pro seu Chico foi: “O senhor está me ouvindo? Não vai embora não... estou aqui contigo... fica comigo!”. Eu lhe dizia isso enquanto lhe fazia uma massagem cardíaca, algum segundo após o infarto a que ele foi subitamente acometido e que prostou seu corpo já anoréxico e envelhecido ao chão da cantina. Eu insistia enquanto mantinha os braços esticados e fazia pressão ritmada com as mãos na linha mamilar do seu tórax, bem na região final do osso esterno.
Eu insistia: “O senhor está me escutando... Eu to tentando!... Me ajuda!”. Analisando friamente agora eu não percebia nada ao meu redor naquele momento. Seu Chico que era personagem alegórico dos meus interesses naquele ambiente, transformou-se no centro de todas as minhas atenções, a esperança maior que me movia era manter nele um fio de vida até que o socorro especializado chegasse (Alguém já havia ligado pros bombeiros, logo eles chegariam). Antes chegaram dois professores de enfermagem, eu pedi que conseguissem uma cânula (não conseguia fazer a ventilação, seu Chico tinha travado os dentes), os professores trouxeram cânula e âmbu, quando o ventilaram seu rosto, que estava roxo clareou. Eu senti o pulmão se expandindo, e esbocei um sorriso ao perceber que a vida ainda se lhe fazia presente.
Continuamos nesse processo de massagem e ventilação, chegaram os bombeiros, o desfibrilador da ambulância estava quebrado, não tinha na ambulância nenhuma medicação de parada, disse aos bombeiros, enquanto alternava a massagem com um deles, que era um absurdo uma unidade de socorro móvel ir prestar atendimento a uma vítima de um ataque cardíaco sem uma noradrenalina ou uma adrenalina. Disse que era uma omissão de socorro, os bombeiros me disseram que era essa a realidade da nossa saúde pública. Pensei em revindicar perante as autoridades competentes, pensei em fazer uma denúncia, mas seu Chico já havia falecido aquela altura, seria apenas mais uma entre tantas denúncias desse tipo, que não modificam nada. Eu tentei mantê-lo vivo até que o socorro chegasse, mas não dependia só de mim. O fato é que nunca vou saber das histórias do seu Chico, mas ele ficou marcado pra sempre na minha história.