O FIM DA FÁBULA

Estava no outono de 1995. Da última escola, velejei meus estudos pelo mar de Vicente de Carvalho. As lições ao pé do morro do Maluf, no Guarujá, escreveram-se na apostila da contemplação. Maré nova... A cidade agora é Santos. Cimentando emoções incensadas pela mudança de cidade, pensei em algo que sapateava nas nuvens do ideal: tornar-me um bom aluno.

A moratória daquele sentimento me levou, pela primeira vez, a ir sozinho comprar os apetrechos escolares. O perfume evaporando dos cadernos da pequena papelaria sequestrou-me. Pronto, um caderno para cada matéria.

Mas nada se iguala ao paladar. O primeiro licor de estranhamento foi servido na apresentação. Entre as etiquetas dos “issos” e “aquilos” daquela escola estadual, ouvi da coordenadora sobre seu gosto por alunos interioranos: “porque são comportados”. Pesei o pensamento. Será que ela gostava de nós, caipiras, por não arranharmos a monolítica paz do colégio com nossos tridentes hormonais, ou por que seríamos uma pimenta menor no ardente acarajé instalado?

Ignorando o relevo esfíngico da observação, a notável condição física da instituição recém-reformada aumentava-me o desejo de molhar os cadernos nas garrafais. Quem vê rótulo, não sabe emoção.

Primeiro dia de aula. Provando o glacê do feudo escolar, adentrei a sala de aula com a vista rapidamente engavetada pela emissão dos olhares perfurantes. Sentei-me na primeira cadeira em que a visão deixou de ser um quadro de Matisse. Um tímido de sorte, quando pela primeira vez em uma sala de aula, sempre conseguirá diminuir a distância da carteira mais próxima na proporção da economia dos ziguezagues. A menor distância entre dois pontos, caro Einstein, por vezes é a necessidade.

Um rótulo inesperado de herege parece que se firmou naquele momento, estacado por uma colega muito ocupada. É que achei melhor (sabe-se lá a tentação) assistir a aula sem escrever, do que escrever sem nada entender, noviço que era ali. A aula era de Geografia, mas mal atinava a demografia circundante. Na dúvida, caderno fechado e semblante estatístico.

Cúmplice das horas louras, entre as escapulidas para conhecer a cidade no recheio das aulas, meu caderno clorou-se no tremular dos dias. Entre os símbolos do destino, topei com a “escultura de Gutenberg”. Nunca se calcula uma metamorfose; do livro imenso do mar ao mar imenso do livro.

Aluno em que a lógica gramatical se espremia entre o surfar na Lua e a pedagogia “meus causos dão de dez em Paulo Freire” da professora de Língua Portuguesa, recebi a brasa fervente de pesquisar sobre fábulas. Entre as borrifadas de tédio daqueles dias, um raio sonoro rebentou as cordilheiras de água açucarada: danou-se! Eu era um marciano na Gramática, conhecia bem a formosa biblioteca municipal de Santos e os sebos na Praça dos Andradas, mas na prática da escrita...

Para nos afivelar ainda mais medo, como se fosse uma monja descrevendo o Inferno de Dante para os aventureiros no pecado, a mestra alertou: depois de Esopo, La Fontaine e dos irmãos Green, ninguém mais poderá fazer fábulas, todas já foram feitas. Em tempo anterior, como se desse para disfarçar essa mácula anímica, minha estimada educadora apontou para todos da sala, o judô que diuturnamente travava com a Última Flor do Lácio, no meu caso, mais inculta do que bela. Ferido em minhas fibras verbais pela alfinetada maliciosa, sorvi o desafio: Ah é? Não se pode mais fazer fábulas? Será?

O prazo de entrega era de uma semana. Desde logo procurei mover o Olimpo em minha empresa, precisaria impressionar, como não? A cada martelada na escrita escutava a voz da professora em sua alfinetada. Escrevia um pouco, apagava muito, delirava um tanto, tornava-me sério. E a voz dela reverberava, reverberava, reverberava. Nem senti as trepidações daquela semana, na biblioteca, apenas meu esforço titânico se ouvia no assoviar intranquilo do lápis.

Senti que havia dado formas finais ao meu grande projeto: modelar uma fábula. Era um tema simples, sobre a sabedoria de um grilo. Nascido o grande dia, estava até afetado na sala de aula, peito ampliado, olhar rijo e sorriso confiante. Um por um, todos eram chamados para a entrega. Pensava no início de meu encontro com a Literatura, amansando os Titãs da crítica, despistando as ninfas do elogio fácil; via-me na entrada triunfal.

Dias se passam na apreensão, e a sensação dos louros revirava o peito. Depois de tantos, sou chamado ao Arco do Triunfo. De alma levitando, caminho para a mesa de correção. Soltando um sorriso desértico, a mestra fulmina: sei que foi você quem escreveu, já disse, não se pode mais fazer fábulas. Não lembro para qual direção foi meu olhar.