27.3.2005— 


Maria-fumaça


Minha geração assistiu de fralda e calça curta aos principais acontecimentos dos anos 1950, entre eles, num âmbito mais bairrista e sentimental, a discreta e melancólica despedida das marias-fumaça que passavam literalmente na porta de minha avó materna, no Irajá, fascinando o endiabrado garoto de cabelos vermelhos.

Este nunca pôde entender muito bem por que os adultos de casa não davam a menor bola àquelas belas matronas a vapor, com seus penachos fumarentos de prata envelhecida e seu lamentoso apito. Já o moleque largava tudo o que estivesse aprontando contra os vizinhos e corria até a passagem de nível da rua Carolina Amado, assim que lhe alcançavam o apito e o matraquear resfolegante de alguma delas chegando à estação de trem, onde engolia e desengolia passageiros.

Lá ficava ele, sereno, calça curta, sem camisa, à beira da linha férrea, aguardando a aproximação dessa outrora grande máquina do mundo. Próximo à passagem de nível, o ciclope de um olho só lançava um grito rouco, demarcando território, e começava a ganhar impulso, rumo à estação de Colégio.

O garoto enfiava rapidamente a mão no bolso, puxando a atiradeira e uma bola de gude, e desferia o míssil, trêmulo de emoção. É bem verdade que nunca acertou o grande olho polifêmico, mas chegava a ouvir o som da bolinha (ou bolão, dependendo do humor ocasional) espatifando-se contra a negra carapaça de ferro, sem maiores conseqüências.

Para a maria-fumaça, claro. Havia muito dedo-duro no armazém do Valentim, ali perto, e o pequeno Davi sem causa ganhava uns bons cascudos depois de cada embate. Muitos, por sinal, pois levou cascudo de todos os adultos de casa, que se revezavam na aplicação do castigo.

Mas elas se foram, inapelavelmente.

Resta-me agora apenas este papel de parede na telinha do micro, minha madalena proustiana — a foto de um trecho da estrada de ferro Rio d’Ouro entre verdes colinas, e uma criança de calção e camiseta à porta de um casebre, vendo o trem passar. Tem muita sorte essa criança eterna do quadro.