UM ROSTO SEM NOME

UM ROSTO SEM NOME

Era o meu terceiro estágio dentro daquele hospital. E desde que comecei o curso de de enfermagem, vinha cada vez mais me apaixonando pela profissão que aos 44 anos decidi abraçar. Já havia passado por muitas experiências profissionais, e cheguei a conclusão que quando "alguém lá em cima" já decidiu o que você vai ser, não adianta lutar contra, pois por mais que sua vida dê voltas, vai terminar bem ali, onde "ELE" havia determinado.

O curso desde o inicio era fascinante. Eu já tinha me formado em ciências contábeis e detestei, não tinha a menor a habilidade com números e contas, muito menos com débitos e créditos. Definitivamente, esta não era a minha praia.

Aos 17 anos entrei para um grupo de teatro, sonhava ser atriz, e depois de ter feitos cursos e wokshops de interpretação, tive minha estréia no espetáculo de um grupo amador na cidade. Foi uma experiência incrível que ia me ensinando a lidar com o elemento humano. O lado psicótico de cada personagem, também tão comum na vida real. Isso foi me dando bagagem e cada vez mais fui me aprofundando, mas aquela sensação de que ainda não era isto, foi ficando.

Me acompanhava aquela impressão de que faltava um sentido à minha vida.

Houve então um concurso no Hospital Público, quando eu tinha 18 anos. Fiz a prova para atendente de enfermagem e disputava uma das 20 vagas disponíveis para o cargo. Os aprovados seriam submetidos a treinamento e todo um preparo para atuar dentro de um hospital escola. Como boa aluna, me classifiquei em oitavo lugar, o que em seguida me valeu a grande oportunidade na qual hoje eu estaria aposentada.

Aprovada no exame médico para admissão, retornei ao hospital e assinei meu pedido de desistência do cargo, afirmando convicta que jamais seria enfermeira!

E fui embora sem um pingo de arrependimento. Triste engôdo. Voltei ao teatro. Era a minha paixão. Fiz inúmeros trabalhos adultos e infantis. Era sempre uma oportunidade de viver uma vida diferente através dos personagens. Ás vezes uma prostituta, ás vezes uma empregada injustiçada, ora uma bruxa, a grande vilã dos contos de fadas, enfim essa era a vida que eu pedia a Deus. Gostava daquilo, mas não queria isso como profissão. Me tornei fotógrafa de moda e cheguei a ganhar um bom dinheiro. Sempre em busca de novos horizontes e novas emoções. O teatro esteve presente no meu dia a dia, e lá eu encontrava forças para continuar a reiniciar minha vida sempre. De lá saiam os meus sonhos mais loucos toda vez que começava a buscar algo novo. Não sei por quê, um dia pensei na Cruz Vermelha. Achava bonito o trabalho desses profissionais da saúde, verdadeiros anjos sem fronteira. O gosto pela aventura, o desejo do novo começava a me fascinar. Foi aí que veio a vontade de estudar enfermagem, porque se me habilitasse na profissão poderia ter a chance de entrar para um desses projetos promovidos por alguma instituição. Curiosamente, nunca vou esquecer aquele estágio, o último antes da formatura e por ironia, no mesmo hospital onde há 21 anos atrás eu sai dizendo que jamais seria enfermeira.

São as voltas que o mundo dá. A cada estágio fui aprendendo a lidar com a vida humana e perceber o quão frágil e delicada ela é. Cada um tem uma estória pessoal, um drama interno, uma dor escondida. Aquelas pessoas não estavam lá por acaso. Acho que a doença é um chamado á reflexão. Um ato para repensar a vida, e iniciar a lição mais difícil no exercício do amor, do perdão e acima de tudo, se perdoar também. Fui observando que a doença física podia ser consequência de uma atitude maligna em relação ao próximo, sentimentos não digeridos, desafetos mal resolvidos que faz jus ao dito popular que diz quando não se aprende pelo amor, fatalmente terá que aprender pela dor. É a lei da ação e reação no universo. E o que mais me marcou, foi o paciente desconhecido naquela unidade do décimo primeiro andar, que há 12 anos foi atropelado por um desses motoristas criminosos e covardes provavelmente bêbado, que ao cometer um ato tão estúpido desses, se evadem do local sem prestar socorro à sua vítima. Este é um fato real. Estava lá, naquela unidade todos esses anos, o prisioneiro de si mesmo, sem identificação, sem que alguém o reclamasse, sem esperança de retornar ao lar, porque ninguém sabia de onde ele era, nem de onde veio. O rosto sem nome tinha um bom aspecto físico, cabeça tipicamente nordestina, olhos verdes profundos e brilhantes. Não emitia nenhum som, não gemia, nem reclamava, apenas movia a mão direita, se agitava no leito quase o tempo todo, o que de alguma forma lhe beneficiava porque assim evitava a formação de úlceras de pressão nas protuberâncias ósseas.

Quando eu me aproximava do seu leito, segurava suas mãos entre as minhas e lhe perguntava que se estivesse me ouvindo, que fechasse os olhos para mim.

Para minha surpresa, ele fechava os olhos. Eu achava que pudesse ser um movimento involuntário de pálpebras, um espasmo muscular qualquer. Então repetia a pergunta e pedia que fechasse os olhos duas vezes seguidas, mostrando os dedos médio e indicador juntos. Novamente ele piscava duas vezes, e eu pude então perceber, duas discretas lágrimas correrem por suas faces. Entendi que ele me ouvia. Chamei a professora para mostrar o resultado da minha descoberta. Enxuguei suas lágrimas com as costas de minha mão direita e fiquei ali, num monólogo sem resposta imediata do meu paciente desconhecido que era identificado somente pelo numero 1112-5. Fiquei mais algum tempo observando aquele par de olhos verdes profundos e pensando em qual seria a sua história? O que teria feito ele de tão grave para ser condenado em vida a esta prisão sem grades? Qual teria sido o seu crime?

Encarcerado dentro de si mesmo, sem comunicação com o mundo exterior, sem conseguir expressar nenhum gesto de dor ou revolta a mercê da caridade alheia.

Sua estória hoje, poderá ser a nossa amanhã. Sua prisão hoje, pode significar também um alerta para que amanhã, com nossas atitudes impensadas não nos tornemos mais um rosto desconhecido no leito de um hospital identificado apenas por número. Estava na hora de passar o meu plantão e voltar pra vida lá fora. E entre todas as estórias que se vê e que se ouve dentro de um hospital, cada um tem o seu drama e sua cruz pra ser carregada.

Não me esquecerei nunca daqueles olhos que vi lacrimejar, e vou tentar ser o melhor que puder, porque agora eu sei o que quero. E comecei viver finalmente, o melhor papel na minha vida em outro tipo de palco, com roteiro improvisado, figurino especifico com a cor da paz e o material de cena sempre um estetoscópio, um esfigmomanômetro, um termômetro e uma caixa de primeiros socorros, num interminável abrir e fechar de cortinas. A vida é um teatro que não permite ensaios, e quase sempre o espetáculo termina sem que haja tempo para os aplausos.

Zilda Alckmin
Enviado por Zilda Alckmin em 02/05/2012
Código do texto: T3646400
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