Radio A Voz da Rússia e um radiouvinte brasileiro

 

Durante tempos troquei proveitosas correspondências com a Rádio Central de Moscou (tempos da União Soviética) que transformou-se em época de perestróika na Rádio A Voz da Rússia, principalmente com o diretor de jornalismo da emissora, Yuri Gromov. Certo dia recebi carta de Yuri dizendo-me que visitaria a Argentina juntamente com o reitor da Universidade Aberta da Rússia, Boris Bim Bad e que bem poderiam passar pelo Brasil. Como trocávamos correspondências e sabiam que eu estudava na Universidade, seria boa oportunidade, passar pela cidade e conhecê-la. Fotocopiei a carta e deixei no gabinete do Reitor (João Carlos Gomes) que prometeu analisar a sugestão com carinho. Em seguida, respondi ao chefe do Departamento de Língua Portuguesa da Voz da Rússia, que deixara a carta com o nosso reitor e que ele prometera analisar. O reitor nunca me respondeu a tal análise carinhosa e eu acabei me conformando com a impossibilidade. Passou-se o tempo. Isso mais ou menos de agosto a dezembro daquele ano. Eis que certo dia, depois de jantar no Restaurante Universitário estava quase subindo para as aulas no curso de História quando meu amigo, José Ronaldo me chamou e disse que havia uns russos me procurando durante a tarde e que eles tinham ido ao gabinete do Reitor. Na hora, não liguei as coisas. Respondi que realmente tinha convidado os russos e que estava ansioso com a chegada deles. Levei na brincadeira. O susto veio quando me disseram que o Professor Ivo José Both, do Departamento de Educação, estava apurado, pois teve que acompanhar os russos, que sabiam se comunicar em alemão, e que isso lhe custara o dia todo. Ao falar com o Professor Ivo percebi que era verdade. Quase morri do coração! A coisa se espalhou e como fofoca na universidade não é dogma proibido, todo mundo se aproximava para tirar onda comigo ou para me intimidar. Disseram-me que os dois homens chegaram de surpresa e sem qualquer documentação de apresentação e que o reitor e o staff ligaram para a Embaixada Russa (Brasília) que confirmou se tratarem mesmo de cidadãos da alta russa, teria o embaixador lamentado não ter sido avisado, pois os recepcionaria também. Menos mal. Mas a assessoria do Reitor não entendia como se processara o convite aos russos. Então, eles pediram a Seção Brasileira da Voz da Rússia que passasse por fax a carta que “Acir da Cruz Camargo” enviara. Pior, estava em papel timbrado da Universidade, se não estou enganado. Não tivesse, eu, o hábito de também guardar cópias de tudo que eu enviava pelos correios, teria sucumbido diante da malevolência dos invejosos de plantão. O reitor tomara conhecimento da carta e da situação. Prontamente, como é o feitio generoso e hospitaleiro dele, tratou de proceder a hospedagem dos russos num dos hotéis conveniados, precisamente, no Hotel Planalto. Problema, os russos estavam aqui no crepúsculo das provas na universidade, vinham as festas de fim de ano e as férias. O ideal seria aproveitá-los em fevereiro para palestra ao curso de pedagogia, visto que o professor Boris Bim Bad (hoje nos EUA) era pedagogo. Outra coisa que não esperávamos pelas consequências políticas daquilo. E assim foi feito. Mas de repente, alguns elementos da Universidade trataram de me excomungar e vieram ferozes em minha direção. Fui chamado no gabinete e em tom de voz nada elegante, me perguntaram com que autoridade eu convidara os russos em nome da sacra universidade. Bem, a rigor, a afirmação de que eu convidara era mentirosa e injusta e como eu tinha a fama de ser petista (mal sabiam eles que eu era marxista leninista) isso deve ter sido prato cheio. Convocaram-me para no dia seguinte, comparecer a uma audiência no Gabinete, às sete horas da manhã. Achei um tanto esquisito visto que o Gabinete funcionava ás oito horas e não era o chefe de gabinete, Brasil Borba que me convocara. Na volta para casa, temeroso de ser pego na surdina, calculando o tamanho do ataque nuclear que me ameaçava, tive uma ideia. Fui na Telepar e comprei um cartão telefônico e numa farmácia, consegui o telefone da casa do Reitor. Já que tudo parecia perdido, que custa ouvir uma sentença antes da OTAN tentar uma operação cirúrgica em meu território. Ou por que também, já que tudo estava correndo risco, não me jogar nos adversários e bancar o leão faminto e enfurecido? Liguei. Por sorte do destino, quem me atendeu foi o próprio reitor. Não era necessário, mas me apresentei e perguntei sobre a história dos russos. Perguntei para ele se tivera oportunidade de ler a carta que eu enviara à Rádio Voz da Rússia. Me respondeu que sim, lera. Perguntei se em algum parágrafo ele observara algum convite formal meu. Respondeu que não. Admitiu que lá, realmente estava escrito que eu estava aguardando a posição dele. Isso para mim era mais importante. Disse ao reitor que estava disposto a pagar os gastos, claro, dentro de parcelamento possível, com meu salário, mas que fosse o Reitor que me condenasse e não subalternos. E esperei no orelhão da Vicente Machado, próximo do atual Shooping Antarctica, a sentençã trágica. Sinceramente, acostumado as agruras de andar a pé, pensei que enfrentaria meses sem salário. Acho que enfrentaria. Aprendi isso na roça. O reitor foi de uma hombridade e cortesia que eu não calculava. Me disse assim “olha, não vá a reunião amanhã. Mas ligue às sete horas e avise que já conversou comigo e que está tudo resolvido, não precisará pagar, só seja mais prudente em outras ocasiões. Essa passa! Mas amanhã você vai no hotel e passa um tempo lá com os russos”. Eu fui. Pela primeira vez tive que puxar o inglês inferrujado e perguntar e responder aos gringos. Que alívio! Voltei sorrindo. Dormi bem. No dia seguinte, fui para o orelhão e liguei. Lá estavam, realmente me esperando. Me perguntaram se eu já não devia estar lá. Eu respondi que já conversara com o reitor e que estava tudo acertado. Desliguei o telefone e me preparei para o dia. Ninguém mais me procurou. A campanha dos escandalizados sobre o feito, me proporcionou um aliado que não me conhecia, Moacir Luporini, esposo da Professora Teresa Jussara. Num jantar, brincando, dizem que ele destacou um convênio que a Universidade fizera com a UA de Moscou, logo, minha loucura não tinha sido tão ruim assim. Acho que aquele convênio jamais saiu do papel. De hilário vale destacar que boatos se espalharam de que eu iria para a Rússia e alguns funcionários me procuravam curiosos querendo saber como também ir. O boato era falso. Da vinda deles apenas me resultou, indiretamente, uma coleção do psiquiátra russo Vigotsky, uma novidade, visto que na época, se falava muito dele em Pedagogia e as obras poucas traduzidas em português. Em fevereiro as aulas começam e então, o curso de Pedagogia faz uma palestrona no Grande Auditório e todos os acadêmicos são convidados. Lotou. Muita gente. Acontece que alguns militantes do PCB, entre eles, o médico Dino Colli, estava lá. Mais do que falar em educação e em Vigotsky, os estudantes queriam saber da queda da URSS, do socialismo, das diferenças com o capitalismo naquele país. Não sei se por maldade ou ingenuidade os alunos sempre repetiam as perguntas se referindo a União Soviética. Os dois russos ficaram chateados e começaram a repetir “A União Soviética não existe mais. Estamos falando da Comunidade de Estados Independentes – CEI” e lascaram críticas ao regime socialista. Dino Colli perdeu a paciência e chamou-os de testas de ferro do entreguismo de Gorbachov e começaram os ataques a partir da platéia. A conferência foi encerrada porque os estudantes do movimento estudantil não se seguraram. Eles foram, então, embora, não sei se com saudades do Brasil, deixando algumas recordações russas no Museu Campos Gerais. Que história! Se tornou um mito nos corredores da Universidade, um folclóre.