Sobre um livro perdido... e um achado...
Já faz duas horas que procuro um certo livro nas estantes. Ele tinha de estar aqui mas não o encontro de modo algum. É realmente frustrante querer ler um livro e não poder.
Enquanto meus dedos vão passando pelas lombadas, uma sucessão de títulos e nomes vai ficando para trás. Estão todos do jeito que arrumei, então cadê o meu Neruda? Não há nenhum motivo especial para procurá-lo em meio aos outros, simplesmente me deu vontade de ler seus vinte poemas de amor seguidos por uma canção desesperada. Tenho plena certeza de que o empacotei junto com os outros que vieram na mudança, porém já vasculhei todas as caixa, bolsas e pilhas ainda por arrumar e nada de encontrá-lo.
É incrível como algumas situações nossas do dia a dia parecem repetir (em menor escala) acontecimentos da história humana que muitas vezes são capazes de nos tirar o sono como se fossem nossos problemas, nossas preocupações e por aí vai. Agora mesmo, enquanto vasculho caixa, prateleiras e armários em busca de um livro cujo destino eu desconheço, me vem à mente o quanto a humanidade perdeu de sua cultura ao longo dos séculos.
Ao passar pela estante em que se encontram lado a lado A Ilíada e A Odisséia, penso no que li outro dia, não me lembro exatamente se num livro ou revista, sobre algumas das obras destruídas junto com a famosa Biblioteca de Alexandria. Entre os livros que nunca mais poderemos ler, e cujo desaparecimento só podemos lamentar, estava uma outra obra de Homero que, em conjunto com suas irmãs clássicas, formaria uma trilogia, talvez a primeira da história literária.
Esta obra, cujo título se perdeu junto com seu conteúdo, poderá fazer falta em um universo quase incontável de livros a que temos acesso em nossos dias? Eu afirmo que sim.
O que me passa pela cabeça é que eu nunca poderei escolher ler ou não este texto. Nunca poderei decidir se atravessarei suas páginas antes ou depois de um ou de outro livro. Está perdido, e sua ausência é uma lacuna em nossa história universal, tal como os vinte poemas de amor que não encontro trazem-me imenso vazio.
Ao mesmo tempo em que abro um dos armários, vasculhando seu interior com olhos e mãos, penso em como certos textos (para nossa felicidade) tiveram a sorte de sobreviver à mão do homem. Penso por exemplo em Gilgamesh.
Imagine-se um texto sumério, escrito aproximadamente no ano 3.000 a.C., perdido durante séculos e do qual só se tinham notícias que mais se assemelhavam a lendas? Agora pense em como seria encontrá-lo intacto nos restos de uma biblioteca real assíria, preservado em lápides de argila, em pleno ano de 1872?
Este livro, que entre outras coisas conta a história dos únicos sobreviventes de um dilúvio (familiar?), sendo o mais antigo texto literário conhecido (1.000 a mais que o primeiro texto bíblico), poderá ser visto como base de toda a nossa história escrita, não sendo difícil para o leitor atento perceber seus ecos nas obras dos séculos seguintes. Afinal, a saga de um herói em busca de provar seu valor está longe de ser um tema esgotado.
No meio dessas divagações vejo um pequeno volume em meio aos outros, não o reconhecendo de pronto e tomado de curiosidade o pego e me sinto imediatamente transportado no tempo: é o meu primeiro livro! O primeiro que li sozinho depois de ter aprendido o ABC! Foi ali que minha paixão pela leitura realmente começou, pois fui eu quem o escolhi para ler, eu quem passeei pelas suas linhas e me deixei encantar por sua história! Graças a ele, todo um universo de vidas e realidades se abriu à minha frente. Sinto como se a cada novo livro que leio (ou re-leio) eu o estivesse revisitando, continuando a aventura que começou naquele livrinho simples e ao mesmo tempo infinito.
Homero e Neruda, continuam perdidos para mim. Gilgamesh jaz na estante à espera de uma releitura que não tenciono fazer tão cedo. Mas este pequeno volume, com suas letras de tamanho médio e suas ilustrações que ocupam a maior parte da página me fez sentir um explorador que num golpe do destino tem a oportunidade de se debruçar sobre um passado (quase) esquecido e aspirar o doce perfume da eternidade.