Na Vida Como Nos Bailes
Nascemos, crescemos, nos tornamos adultos, envelhecemos e morremos. Roteiro mais do que natural e totalmente previsível do viver.
Pode ser natural, pode ser determinístico, mas aceitar emocionalmente é outra história.
A fala daquele rosto marcado por mais de sete dezenas de anos, acredito que tenha incomodado não só a mim, mas a maioria dos setentões que estavam na sala de espera do proctologista.
Entretanto, a prosa tomou outro rumo, quando continuou com a afirmativa: “faço um trabalho com conversas comigo mesmo para: reeducar-me; convencer-me de que a morte é natural; e ver se passo essa última experiência nesse plano de forma tão natural quanto o nascimento. Ou pelo menos da forma mais natural possível
E o companheiro de exames periódicos e preventivos continuou,como se estivesse fazendo palestra a nós outros: “a vida é semelhante a um baile, quando o final se aproxima, nos inclinamos a voltar a dançar com as damas,que mais nos agradaram”.
Chegávamos aos bailes de nossa época e logo fazíamos um reconhecimento do ambiente e já marcávamos com quem dançaríamos: aquele decote insinuante; aquele sorriso moleque; aquele olhar triste; aquela boca rubra pelo batom inconveniente; aquelas pernas torneadas; aquela cintura de violão...
Nunca o realizado é como o planejado, algumas danças nãos ocorreram, mas nada que pudesse reduzir nosso prazer de dançar e nossa alegria de estar no baile..
Lá pelas duas e meia da manhã, a programação possível fora cumprida e começávamos a perceber, que o baile estava rumando para seu término. Nesse momento, nos ocorria um sentimento de querer voltar a dançar com aquelas, que conosco formaram um par, dançando. Um sentimento de querermos nos despedir, repetindo o que acontecera de melhor.
Voltávamos a dançar com: aquela ,que nos permitiu fazer firulas até no tango; com aquela, que trocamos pontos de vista enquanto dançávamos; com aquela que aproximou seu rosto no momento em que a melodia pedia a harmonia de rostos colados; e com aquela , já mulher e do tipo fatal que, simulando descuidos, roçara suas unhas longas e bem tratadas, numa nuca em explosão de hormônios.
Assim é: na vida como nos bailes....
Passamos um bom tempo para reconhecermos o ambiente. Experimentamos vários esportes; tentamos aprender algum instrumento musical; participamos das festas escolares; fomos a bailes; aprendemos a apreciar algumas artes; namoramos; escolhemos uma profissão; casamos; fomos transformados em pais e chefes de família; participamos de muitos projetos profissionais; militamos; mudamos de cidade, de estado e até de país; escolhemos um caminho, para voltarmos falar com Deus.
Enfim a linha de chegada, nossos filhos nos transformaram em vovôs.
Entretanto, aquele mesmo sentimento de que o baile estar para acabar, da mesma forma nos traz esse desejo de despedida. Dançar no baile da vida com tudo aquilo, que mais formou par conosco.
Em compensação isso nos deixa alerta, vigilante., ávidos como nunca. Vivemos como estivéssemos nos despedindo, com aquela intensidade como dançávamos sob os ponteiros do relógio a indicar, que o baile estava caminhando para seu término.
Não adianta pedir para que parem os ponteiros do relógio, o tempo não pára.
Voltemos a dançar com os pares de nossas vidas, mas não esqueçamos de voltarmos para nós mesmos e dançarmos, não como despedida, mas como aproximação daquilo que somos realmente e que reconheceremos como permanente após o baile maior, a vida, nesse plano, terminar.
A porta da sala de espera abriu-se e a secretária chamou o ilustre orador. Senti no ar que aquela fala tocara fundo os dançarinos ali presentes...