Trajetos
Meu cotidiano é de poucos trajetos. Duas ruas paralelas e outra ligando as duas. Uma dessas ruas se estica um pouquinho e muda de nome, mas é a mesma. Uma parada na Praça e depois continua, o que valeu a essa bela cidade que me acolheu o codinome de cidade de uma rua só – a tortuosa Rua Direita, que nem existe mais, já que a cidade se espalhou.
Raramente saio de casa com Mr.Green, é mais fácil caminhar que rodar- e sempre estou por perto. Casa – Padaria – Bancos –Padaria- Casa.E as livrarias, todas perto.
# Um pouco acima de minha casa, em frente a uma demolição para dar origem a um edifício de alto luxo, eles recolhiam o lixo de uma caçamba. Era um lixo rico em materiais recicláveis. Por um momento fiquei olhando. Eles escolhiam um objeto na caçamba, limpavam com as próprias mãos e colocavam em um carrinho de madeira. Aproximei-me e puxei conversa – Ivanildo e Vander. Vivem disso, não pedem esmola e nem roubam. Trabalham. Propus-lhes uma parceria: vou dar-lhes o meu lixo, já limpinho e separadinho nos fundos da Padaria. Armários que foram substituídos, esteiras de metal, latas de todos os tipos, vidros, caixas e mais caixas de papelão. Acho que será uma troca justa, ambos sairemos ganhando. Vou esperá-los.
# Mal virei à esquina eu a ouvi me chamando. Não foi a primeira vez. Disse com voz chorosa: Maria Olimpia, estou presa aqui, quero sair. E lá estava ela, atrás da porta gradeada, como se fosse uma prisioneira.Estava arrumadinha, mas as roupas e bijuterias antigas mostravam o seu abandono. Quando me aproximei notei os dentes estragados na boca de batom vermelho. Nem sempre diz o meu nome, já me chamou de Marilda (nome de minha irmã), já perguntou o meu nome, quis saber quem eu sou. Moça estudada, família tradicional, duas vezes casada, uma separada e depois viúva dos dois. Um único filho, adotivo, que herdou tudo do pai adotivo, que era rico, muito rico e a quem mal conheceu. Morava ali com ela e um bando de filhos, mimados como ele foi. Quando a decadência se instalou e o dinheiro acabou foram nem sei pra onde e a deixaram ali com uma empregada que algumas vezes nem vem e ela fica ali, implorando a quem está de fora que a ajude a sair. Pediu as chaves que estavam em minhas mãos para experimentar na sua porta. Logo a vizinha do lado chegou, indignada, dizendo que isso está acontecendo cada vez mais amiúde e que não sabe o que fazer. Certificamos se tinha comida e nos despedimos amarguradas. O que fazer em um caso desses?Sei que abandono de incapaz é crime, mas não posso simplesmente chamar a polícia ou o Corpo de Bombeiros. Poderia, querendo ajudar, piorar mais a situação. Prometi a mim mesma ficar atenta e pegar o filho de jeito. Afinal, foi meu aluno e certamente poderemos conversar. Se fosse de minha família, sinceramente, eu levaria para uma Casa de Repouso onde ela teria pelo menos companhia. Aliás, se fosse minha mãe eu nunca a deixaria sozinha.
# Na mesma rua, que interliga as duas paralelas, do outro lado parei para visitar o meu amigo A. que sofre as agruras do diabetes e pouco a pouco vai perdendo pedaços dos pés. A sua linda casa colonial tem um anexo charmoso onde ele passa os dias . Esse anexo dá para essa rua. Já estava com duas visitas – uma delas, uma artista, foi minha professora. A outra, sua cunhada, eu não conhecia. Ao saber que eu era a dona da Padaria Rocha fez questão de dizer: É o melhor pão da cidade. Moradora da Zona Sul, disse ela, pegava o ônibus que era de graça e vinha uma vez por semana buscar o pão, que congelava para comer nos outros dias. Mas agora, disse ela, agora me proibiram andar de ônibus e pagar táxi fica muito caro. Prometi-lhe que encontraria uma solução para que ela voltasse a comer do nosso pão. Idosas, as duas, assim como a prisioneira da casa mais embaixo. Mas que diferença de vida...
#Bem na esquina, na parede clara, uma pichação chamou minha atenção. Parecia ter sido carimbada ali. A silhueta de um ser humano andrógino, assentado em uma cadeira, de perfil, a cabeça ligada por fios a uma caixa, os cabelos eletrizados. Ao lado, a mensagem. LEVANTE contra a tortura. Não Perdoaremos. Não esqueceremos.
#Finalmente a rua do meu destino, onde se ergue sexagenária, a Padaria Rocha, a segunda mais antiga da cidade. Fui para o meu escritório, um verdadeiro Saara, mas fiquei pouco lá. Fui chamada, um freguês queria conversar comigo, em particular, discretamente. Estranhei, converso sempre com ele, mas fui. Pois eu nem podia imaginar o que ele queria – pedia o meu voto, já que será candidato a vereador nas próximas eleições. Queria que eu, como formadora de opinião, além de votar nele, falasse bem dele para os outros. E aí, patati,patatá, ele foi enumerando as suas virtudes, que não eram poucas. Cheguei a pensar: eis um bom candidato, até que ele cometeu um pecado mortal para um político frente ao seu eleitor– por duas ou três vezes me chamou de Maria Emília.
Meu cotidiano é de poucos trajetos. Duas ruas paralelas e outra ligando as duas. Uma dessas ruas se estica um pouquinho e muda de nome, mas é a mesma. Uma parada na Praça e depois continua, o que valeu a essa bela cidade que me acolheu o codinome de cidade de uma rua só – a tortuosa Rua Direita, que nem existe mais, já que a cidade se espalhou.
Raramente saio de casa com Mr.Green, é mais fácil caminhar que rodar- e sempre estou por perto. Casa – Padaria – Bancos –Padaria- Casa.E as livrarias, todas perto.
# Um pouco acima de minha casa, em frente a uma demolição para dar origem a um edifício de alto luxo, eles recolhiam o lixo de uma caçamba. Era um lixo rico em materiais recicláveis. Por um momento fiquei olhando. Eles escolhiam um objeto na caçamba, limpavam com as próprias mãos e colocavam em um carrinho de madeira. Aproximei-me e puxei conversa – Ivanildo e Vander. Vivem disso, não pedem esmola e nem roubam. Trabalham. Propus-lhes uma parceria: vou dar-lhes o meu lixo, já limpinho e separadinho nos fundos da Padaria. Armários que foram substituídos, esteiras de metal, latas de todos os tipos, vidros, caixas e mais caixas de papelão. Acho que será uma troca justa, ambos sairemos ganhando. Vou esperá-los.
# Mal virei à esquina eu a ouvi me chamando. Não foi a primeira vez. Disse com voz chorosa: Maria Olimpia, estou presa aqui, quero sair. E lá estava ela, atrás da porta gradeada, como se fosse uma prisioneira.Estava arrumadinha, mas as roupas e bijuterias antigas mostravam o seu abandono. Quando me aproximei notei os dentes estragados na boca de batom vermelho. Nem sempre diz o meu nome, já me chamou de Marilda (nome de minha irmã), já perguntou o meu nome, quis saber quem eu sou. Moça estudada, família tradicional, duas vezes casada, uma separada e depois viúva dos dois. Um único filho, adotivo, que herdou tudo do pai adotivo, que era rico, muito rico e a quem mal conheceu. Morava ali com ela e um bando de filhos, mimados como ele foi. Quando a decadência se instalou e o dinheiro acabou foram nem sei pra onde e a deixaram ali com uma empregada que algumas vezes nem vem e ela fica ali, implorando a quem está de fora que a ajude a sair. Pediu as chaves que estavam em minhas mãos para experimentar na sua porta. Logo a vizinha do lado chegou, indignada, dizendo que isso está acontecendo cada vez mais amiúde e que não sabe o que fazer. Certificamos se tinha comida e nos despedimos amarguradas. O que fazer em um caso desses?Sei que abandono de incapaz é crime, mas não posso simplesmente chamar a polícia ou o Corpo de Bombeiros. Poderia, querendo ajudar, piorar mais a situação. Prometi a mim mesma ficar atenta e pegar o filho de jeito. Afinal, foi meu aluno e certamente poderemos conversar. Se fosse de minha família, sinceramente, eu levaria para uma Casa de Repouso onde ela teria pelo menos companhia. Aliás, se fosse minha mãe eu nunca a deixaria sozinha.
# Na mesma rua, que interliga as duas paralelas, do outro lado parei para visitar o meu amigo A. que sofre as agruras do diabetes e pouco a pouco vai perdendo pedaços dos pés. A sua linda casa colonial tem um anexo charmoso onde ele passa os dias . Esse anexo dá para essa rua. Já estava com duas visitas – uma delas, uma artista, foi minha professora. A outra, sua cunhada, eu não conhecia. Ao saber que eu era a dona da Padaria Rocha fez questão de dizer: É o melhor pão da cidade. Moradora da Zona Sul, disse ela, pegava o ônibus que era de graça e vinha uma vez por semana buscar o pão, que congelava para comer nos outros dias. Mas agora, disse ela, agora me proibiram andar de ônibus e pagar táxi fica muito caro. Prometi-lhe que encontraria uma solução para que ela voltasse a comer do nosso pão. Idosas, as duas, assim como a prisioneira da casa mais embaixo. Mas que diferença de vida...
#Bem na esquina, na parede clara, uma pichação chamou minha atenção. Parecia ter sido carimbada ali. A silhueta de um ser humano andrógino, assentado em uma cadeira, de perfil, a cabeça ligada por fios a uma caixa, os cabelos eletrizados. Ao lado, a mensagem. LEVANTE contra a tortura. Não Perdoaremos. Não esqueceremos.
#Finalmente a rua do meu destino, onde se ergue sexagenária, a Padaria Rocha, a segunda mais antiga da cidade. Fui para o meu escritório, um verdadeiro Saara, mas fiquei pouco lá. Fui chamada, um freguês queria conversar comigo, em particular, discretamente. Estranhei, converso sempre com ele, mas fui. Pois eu nem podia imaginar o que ele queria – pedia o meu voto, já que será candidato a vereador nas próximas eleições. Queria que eu, como formadora de opinião, além de votar nele, falasse bem dele para os outros. E aí, patati,patatá, ele foi enumerando as suas virtudes, que não eram poucas. Cheguei a pensar: eis um bom candidato, até que ele cometeu um pecado mortal para um político frente ao seu eleitor– por duas ou três vezes me chamou de Maria Emília.