Euclides e a Morte Viva
Com os ossos cansados ele abre os olhos... mais um dia se reinicia e sua morte não chegou como esperava; como almeja há alguns poucos anos. A ausência do carinho torna a sua existência vaga, insossa e no fim das contas, se tornou uma existência inexistente. Ninguém mais do seu convívio está vivo. Aqueles que viveram ao seu lado os bons tempos em que ainda se sentia definitivamente vivo, com sua virilidade rija, já não estão mais por aqui... e as memórias dos tempos áureos o deprime, ainda mais agora que não passa de um monte de pele se amontoando por cima de si mesma, com as juntas fracas, os olhos embaciados, a audição prejudicada e os vícios cortados. Afinal de contas aquela longevidade vinha a ser uma dádiva? Ou uma punição por ter sido feliz? Era necessário mesmo todo aquele vilipêndio quando se teve uma vida cheia de vida?
O velho se levanta, vai até sua escrivaninha no canto de seu quarto, abre a terceira gaveta de cima para baixo, e de um compartimento secreto retira um de seus charutos que ficam escondidos ali, distante da vista da enfermeira que ele paga para que ela o diga o que não fazer. É um saco tudo aquilo... depois de ter vencido na vida, conquistado a sua fortuna modesta, ele tinha que se sujeitar à ordem de outrem. Tinha que depender. Por mais que a cabeça funcionasse, e metalizasse cada movimento sumário, os membros não conseguem reagir da mesma maneira com os quais os pensamentos os comandam. Caminha a passos lentos e arcados sobre sua própria coluna em direção à janela de venezianas azul-prússico, e com as mãos manchadas e tremulas, abre a luz que invade a sua retina empalidecida e lhe mostra mais um dia que lhe sorri triste do lado de fora, onde jovens caminham rapidamente para as suas vidas, onde crianças fazem birra por um simples “colo”. Os carros, a rotina, o mundo está vivo, pulsando!!... Mas não ele!!!... Não ele que cheirava sempre a roupas limpas e tinha que se cuidar e policiar quanto a tudo o que ingere.
A passos arrastados segue o rumo de sua poltrona que o acompanha há no mínimo 20 anos. Mas já nem mais se lembra de quem a deu de presente, talvez o cunhado , ou o primo Artur com quem tinha uma irmandade fora do padrão... de qualquer forma, não importa, pois ambos já estavam mortos há no mínimo 10 anos. Já nem se lembrava nem mesmo quando fazia aniversário, os dias do calendário eram todos uma sucessão de dias aleatórios, que se sobrepunham uns sobre os outros apenas como uma representação de nascer e morrer do sol, pois nada de mais acontecia em sua rotina diária: que era se arrastar pela casa como uma lesma, tomar remédios amargos, e vez ou outra tomar um banho de sol... sua rotina só mudava quando tinha que ir ao médico, e quando esse era o dia, o desgosto e o mal humor tomavam conta de sua pessoa. Não conseguia conceber em sua mente ser tratado como uma criança de 3... 4 anos. Pro inferno com aqueles procedimentos cuidadosos que despendiam sempre em seu beneficio, mas sabia plenamente que, se hora menos hora o seu dinheiro acabasse, ver-se-ia sozinho no mundo mendigando a benevolência. Então para que respeitar as regras daquelas pessoas malditas? Só podia estar louco por pagar às pessoas para o regrar, para o manter vegetativo tanto em mente quanto em alma. Que merda de existência era aquela? Levantou-se imponente com o isqueiro na mão como se fosse uma espada e disse o mais alto que a sua voz podia dizer: “ Que se fodam a todos esses bundas sujas que me rodeiam! Eu sou dono de mim mesmo e sei o que bem quero fazer com a minha pessoa!”
E no momento em que levava o isqueiro ao charuto preso entre os dentes, eis que a porta de seu quarto se abre e sua enfermeira/governanta adentra o cômodo com um vidro de xarope uma colher presa entre os dedos, e se apressa em sua direção retirando sem dificuldade alguma o charuto e o isqueiro de seu poder: “ Senhor Euclides – disse ela com um sorriso já com a colher cheia daquele xarope horrendo – sonhando mais uma vez com o tempo da juventude?!”
E em silencio sem esboçar nenhuma reação, o velho Euclides se deixa sentar e permanece estático com os olhos vidrados na janela que lhe apresenta o dia do lado de fora. E mesmo que sua cabeça ainda funcione, e suas vontades sejam todas contrárias a tudo o que tem vivido, não pode se mover dali, e vai tendo a cada dia que passa uma morte lenta... e aceita esse fardo, pois mesmo que deseje a morte a cada amanhecer, é incapaz de praticá-la contra si mesmo, pois o seu segredo mais ínfimo é justamente o medo da morte. E por mais uma vez engole o xarope amargo que desce por sua goela, e tem a impressão de que aquele é o exato gosto da vida!