Uma noite perfeita

Tem coisa que a gente olha e incomoda. Outro dia vi uma humilhação. Era uma cadeira velha servindo de apoio pra banco. Humilhação de cadeira velha é servir de apoio pra banco, contou-me a segunda pinguinha. Olhei despistado, não quis o constrangimento de um olhar fixo, bem como evitei aquele assento. Encostei-me na parede e fiquei com minha viagem de limão. Lá fora a bica despejando uma água pesada. Na cozinha, por sua vez, era uma água doida que descia pelo cano, engasgava-se com ar e cuspia tudo na torneira num borrorró sem fim.

E a noite trouxe suas entradas de estrelas e uma rã perto da bica – pela pancada do seu coaxar, certamente uma pimentona. O céu estava limpo, prometia uma noite estrelada, fria e com muitos vaga-lumes. Tratei de pedir mais uma. Já ia para a terceira, a vista turvando e as ideias atrapalhando-se na cabeça.

Puxei assunto com o Sujo, amigo lá da serra da Glória. Falei do Baiano, um mendigo ali do jardim de Baixo. Contei-lhe que outro dia ele, o mendigo, estava com um galhinho de arruda atrás da orelha. Uma cena preocupante. Sinal claro do fim dos tempos. Até mendigo se protege com arruda! O Sujo, depois de ouvir isso tudo, concordou. Falou que a coisa está feia mesmo. Explicou que a inveja é cachorro de muita pulga, vai até matar. E por falar em cachorro, brinquei com o Micróbio, cachorro do Sujo. Aliás, pelo tocar de sua guitarra, andava muito invejado. Era o tempo todo aquelas unhas nas constelas, um Hendrix.

A a conversa foi entrando pela noite. Vez em quando uma lagartixa riscava o céu pardacento da parede da cozinha, e de tanto engolir vaga-lumes já era um cometa – lagartixa. A lenha ia estalando baixinho no fogão, a gatinha pegava seu calor e tirava um cochilo. Pelo mexer de seus bigodes, sonhava com saborosas rolinhas.

Liguei, pela força de suas pilhas e tamanho, o radinho. O Sujo falou algo, ou melhor, resmungou. Já estava um pouco chapado. Não demoraria muito iria apagar. Apesar do apelido, é bom que se diga, é tudo limpeza por lá: chão, camas, pratos, falas, olhares...

Então o radinho foi fazendo as vezes do amigo, do silêncio e da Adriana que ficou de aparecer e cozinhar um prato diferente. A barriga já começava a roncar. Fui ficando impaciente com sua demora. Resolvi ir para a estrada. Uma caminhadinha iria despistar a fome e melhorar a zonzeira. O Micróbio me acompanhou. Ia na frente todo fagueiro. Ora parava, levantava as orelhas, rosnava baixinho. Depois via que era só uma vaca preocupada com seu pastar e logo relaxava. Andamos por uns dois quilômetros. Uma estradinha que subia e subia, numa amarração de cercas velhas. Nada de casa e veículos. Basta sair um pouquinho da cidade para o movimento desaparecer e o mundo ficar grande de novo.

Chamei, como se precisasse, o Hendrix. Voltamos. Agora era só descida. O corpo mais leve e a cabeça mais quieta. Do alto, vi a moto da Adriana. Beleza! Agora é tomar outras, rir bastante, ouvir uma musiquinha, mandar um bom prato...

A noite estava perfeita.

adrianood
Enviado por adrianood em 04/04/2012
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