O SILÊNCIO DE DEUS NA VOZ DE BERGMAN

No longa-metragem “Luz de Inverno”, de 1961, o segundo da “Trilogia do Silêncio”, o genial cineasta sueco Ingmar Bergman faz ecoar a voz mais incômoda e angustiante que pode acometer um homem: o silêncio de Deus. A temática religiosa é o fio condutor de toda a obra do premiado diretor. Mais do que abordar o sagrado em seus filmes, Bergman propõe questionamentos desconfortáveis sobre Deus, municia alguns de seus personagens com aflições e dúvidas que os fazem parecer cadáveres espirituais, almas raquíticas, definhadas pela ignorância que o mistério sobre a existência ou não de Deus lhes imputa.

Bergman disseca a questão com elegância, honestidade intelectual e, sobretudo, com a mesma angústia comum a seus personagens e a nós, mortais do outro lado da tela. No filme “Através de um Espelho”, que inaugura a trilogia, Deus aparece apenas nos delírios de Karin, a personagem que sofre de um processo de loucura degenerativo. Mesmo assim surge para ela em forma de aranha, fato que apressa a sua internação. O silêncio é, naturalmente, a linha que atravessa as três obras. Mas em “Luz de Inverno”, a figura de Deus é desejada com a força do desespero, a sua luz é necessária para combater tamanha escuridão, mesmo que só tenha a força de uma candeia.

Focalizando a obra nota-se algo comum aos filmes de Bergman: o isolamento geográfico, a pequenez de seu cosmo, a bela fotografia, o número reduzido de personagens e o fardo que cada um deles carrega. A figura central do longa é o vigário Tomas Ericsson, pastor de um reduzido e desinteressado rebanho. A cena que abre a narrativa dá a primeira mostra do silêncio de Deus: um silêncio que ganha ressonância em cada um dos corações dos minguados fieis. Todos com desinteresse, tédio e fadiga diante das liturgias dentro da casa de Deus. Mas a falta de energia não acomete apenas o reduzido rebanho, é extensiva ao músico oficial, ao sacerdote e, até às imagens que ornamentam as paredes.

Jonas e Marta, marido e mulher, procuram o vigário Tomas para uma palestra incomum: Jonas estava desesperado, aflito, pelo fato de descobrir que a China estaria fabricando armas nucleares. A possibilidade de uma hecatombe atômica o apavora a ponto de sua vida esvaziar de sentido. Em uma conversa reservada, Jonas espera ouvir do sacerdote algum consolo, mesmo sem acreditar muito na ideia. Tomas esquece-se por um momento da sua função de consolador e despeja no condenado Jonas a sua crise de fé, a sua negação à figura divina, as suas dúvidas, o seu desconforto face à função que ocupa. Jonas sai do gabinete pastoral direto para a morte, nada mais o detém, põe fim à sua vida com um tiro. Não avancemos além dessa linha sobre a narrativa, que não é um itinerário rico em ações. Quase todo o cenário é composto pela acanhada Igreja, com suas imperfeições e limites palpáveis, talvez uma metáfora do alcance humano.

Foco no silêncio de Deus evocado pelo filme. O silêncio de Deus que frustra o sacerdote, que o torna indigno de seu ofício. Tomas sofre. A sua fé começa a desmoronar, a ruir, a implodir, levando consigo convicções, conceitos e princípios. O Deus bondoso, justo e prestativo é substituído no coração de Tomas por uma dúvida sorrateira ou às vezes por um Deus que é contestado, negado e até enojado pelo religioso. O silêncio de Deus é aterrorizante para o pobre vigário, é a voz que desmantela todo o seu arcabouço de ideias.

Por fim, o silêncio de Deus na solidão de Cristo no calvário é denunciado pelo sacristão em audiência com o vigário Tomas. Calmamente, o sacristão expõe sua tese: que o foco sobre o sofrimento de Jesus é exagerado na parte física, que teria durado umas quatro horas. Menor do que da maioria das pessoas, argumenta o sacristão. Para ele, o martírio verdadeiro foi a dúvida de Cristo no momento da pregação na cruz, quando ele se sente abandonado por Deus e, desesperado, ecoa seu brado. O indefeso e confuso pastor não consegue reunir qualquer argumento para contrapor e, concorda com um silêncio conformista.

Bergman é eloqüente em seu discurso. Em Bergman, o silêncio não é como um sepulcro fechado. É como um coral gregoriano a ensaiar uma canção melancólica interminável. O silêncio de Deus é apresentado não de forma crua. É complexo, cheio de nuances, de possibilidades. Em Bergman, o silêncio de Deus é ao mesmo tempo a negação e a busca, posto que os personagens vítimas dele vivem na mais completa desolação, em uma procura aflita e quase sem esperança.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 02/04/2012
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