Rosebud 


Vejo nitidamente na tela da memória a tarde em que ela chegou, meados de 1968, mas não me lembro mais do ano exato em que se foi para sempre, depois de conviver comigo quase uma década. Recordo-me, entretanto, que durante todo esse tempo meus pais faziam questão de mostrar o quanto se sentiam incomodados com sua presença no melhor quarto da casa, com varanda coberta, portas francesas e minicloset. 

Rejeitada por um industrial falido de Marechal Hermes, a grande mesa de aço inoxidável tomava para si metade do aposento, sem falar na imponente cadeira giratória que a acompanhava, digna de um senhor de Xanadu. Gavetas e gavetões abriam-se e fechavam sobre rodinhas, e enchiam o apartamento, especialmente tarde da noite, com os sons de um escritório particular em ação. 

Lá estava este projeto de cronista fazendo gemer não os prelos, como escrevia o desiludido Balzac, mas as molas da cadeira, que desde então nunca mais viram um pingo de graxa. 

Ali rascunhei, em estado febril, meus poemas panfletários, derrubando todos os milicos do país só com a fúria dos versos; ali copiei, linha a linha, toda a Chartreuse de Stendhal, seguindo um conselho de André Maurois a Jean-Paul Sartre, e que este talvez não tenha acatado; ali estudei minuciosamente o Protágoras platônico, essa deliciosa farsa filosófica; ali sonhei, meditei, namorei... Sim, ali dei um amasso sensacional em minha primeira namorada, valendo-me sobretudo do design meio anatômico da cadeira. 

Infelizmente, exceto por mim e meu irmão caçula, que já começava a rabiscar os seus próprios versos, também panfletários, ninguém mais na família lançava à pobre mesa o mais escasso olhar de carinho. Para eles, nem era mesa; era um trambolho que precisava ser retirado urgentemente dali. Minha sorte é que naquela época eu rosnava bem melhor do que hoje, e ela foi ficando. 

Com o tempo, devido a reuniões de natureza política, meu irmão e eu começamos a sair mais de casa e nos descuidamos completamente do grande móvel de aço. 

Seu tampo enorme — onde tantas vezes promovemos campeonatos de pingue-pongue e futebol de botões; onde chegamos a dormir, e bem, em noites de muita gente em casa — logo começou a abrigar tudo o que não mais servia no apartamento, tornando-se, ao sabor da raiva com que jogavam as coisas ali em cima, uma verdadeira instalação pós-moderna. 

Um belo dia, a própria cadeira foi parar no meio das tralhas empilhadas, sacramentando, sem qualquer piedade, a nossa derrota. Orson e Welles (assim passara a chamar aquela dupla de aço) voltaram para as mãos do mesmo industrial fracassado, quase um mendigo então, e ele nem pensou duas vezes: contratou uma carroça para levá-la e torrou a mesa no ferro-velho do bairro. 

Quando, ato final, a cadeira foi atirada na caçamba, vi meu nome e o de minha namorada, a do amasso, talhados a canivete nos fundilhos do assento. 


(Ilha do Governador, 20.3.1995)