Um caminho, algumas leituras.
Um caminho, algumas leituras!
Caminhar é um exercício de leitura, principalmente quando experimentamos aquele olhar de criança curiosa que se encanta com tudo que está ao seu redor. Caminhando podemos ler o rosto das pessoas, a natureza, os acontecimentos. Caminhar amplia o olhar. Estava me deliciando com esse pensamento quando esbarrei em Tobias Barreto no Espaço de Convivência Cultural da Orla de Aracaju. O bronze duro da estátua tamanho natural despertou meus sentidos. Examinei a figura de Tobias: imponente, rosto de traços marcantes, pernas que pareciam caminhar firmes em minha direção. Observar Tobias fez com que me lembrasse de outras leituras que fiz sobre esse escritor, e como um pensamento leva a outro... Se Tobias não tivesse morrido, o que escreveria nos jornais? E nos poemas? Que discurso faria? Que tipo de luta travaria? Alguns turistas se aproximaram e começaram a tirar fotos com as estátuas. Uma foi logo abraçando Jackson de Figueiredo, outra tirou uma foto no colo de Silvio Romero, outro tinha os olhos fixos em Pedro Calazans (parecia querer arrancar a expressão do seu olhar). Eram treze turistas, somente dois leram o que estava escrito em cada uma das estátuas. E se ao invés de turistas fossem visitantes sergipanos? Quantos leriam? Quantos se interessam por nossa cultura, nossa história? Após alguns sorrisos e poses os turistas foram embora. Lembrei-me do meu professor de artes que sempre insistia em dizer que um povo que não conhece, nem valoriza sua cultura é um povo fácil de ser dominado. Professor que nos proporcionou aulas prazerosas sobre escritores e artistas sergipanos. Naquela época não podia imaginar a importância daquela vivência cultural!
Nesse momento, vi chegar um morador de rua cambaleante com uma garrafa de cachaça na mão. Sua roupa estava rasgada e suja, porém o chapéu que tinha na cabeça era de chamar a atenção. O chapéu tinha aba dobrada, vários espelhos e brilho de purpurina. O homem olhou para as estátuas e começou a cantar e a dançar:
-Quando eu cheguei nessa casa eu perguntei, eu perguntei se eu podia rezar.
Ajoelhar bem direitinho, guerreiro fazendo pelo sinal.
Depois quase caindo no chão, perguntou as estátuas:
−O que vocês estão olhando? Nunca viram um mestre de guerreiro não? Tão achando ruim porque eu estou aqui no lugar de vocês que são rico? Vocês num querem que eu fique aqui não? Mas eu vou ficar. Eu não tenho para onde ir, eu não tenho casa, nem parente, nem amigo, eu não tenho ninguém.
Olhou então para Silvio Romero e falou:
-Ei você aí, você que tá com o livro no colo, para de ler e olhe para mim. Eu também tenho uma história para contar. Tá duvidando é? Minha história dar para escrever um livro também, e dos grandes. Só não vou lhe contar agora, porque estou coom um soono danado, mas se você me deixar botar a cabeça no seu colo, quando eu acoooordar eu coonto.
E foi se deitando no mesmo banco de cimento onde estava sentado Silvio Romero, depois colocou a garrafa de cachaça no chão e aconchegou a cabeça no seu colo. Em poucos segundos adormeceu.
Observar aquele mestre de guerreiro dormindo no colo de tão ilustre escritor trouxe a tona imagens que criei ao ler sobre sua vida. Inúmeras vezes o menino Silvio adormeceu com a cabeça no colo de sua mãe de leite (que também era escrava da fazenda de seu avô), escutando suas histórias (que depois ele recolheu e publicou em seus livros). Certamente ela ficaria feliz ao ver outro negro com a cabeça no colo de seu menino. Menino que depois cresceu e dedicou parte de sua vida pesquisando e escrevendo sobre a cultura popular. Menino que teve as condições necessárias de transformar sua vivência cultural, seus conhecimentos em leitura, diferentemente do mestre de guerreiro, que embora acredite que sua vida mereça estar escrita em um livro, nunca aprendeu a escrever ao menos uma, das muitas palavras que precisaria conhecer para contar sua história.
Tânia Cristina Cardoso de Gois