Grilações cruzadistas
Ao contrário do que alardeiam muitos jogadores de futebol quando contratados por um novo clube, eu não sou revisor desde criancinha. Já entrei burro velho no ramo editorial — aos trinta e um de idade —, como conferente e grilador de palavras cruzadas. Tive de aturar, por causa disso, o preconceito dos intelectuais da minha patota em Marechal Hermes. A turma da Esquina do Estabaco torcia o nariz a esse tipo de passatempo (ou perdetempo, como preferiam dizer), tachando-o de cultura inútil. Como é que um leitor de James Joyce e Guimarães Rosa, indagavam, podia sujeitar-se a tal diluição literária? (Diluição, aqui, numa clara referência a Ezra Pound e sua teoria sobre os diluidores nos gêneros narrativos e no fazer poético. Os caras iam fundo, não tenham dúvida.)
Sei que não devem saber o que é um grilador de palavras cruzadas. Eu também não sabia. Era jargão da editora e tinha tudo a ver com o sentido figurado de grilo. Nossa tarefa consistia em detectar e questionar os grilos de conteúdo nas definições das palavras que se entrecruzavam neste ou naquele diagrama. A criação dos diagramas, com os termos a serem definidos dispostos na página, era terceirizada.
Vai um exemplo, dos mais polêmicos na época. Quando, em 1980, João Paulo II visitou o Rio de Janeiro, Broinha, um dos nossos, não quis saber de conversa e definiu: “O papa deu o dele no Morro do Vidigal”, quatro letras — ANEL. A seção veio abaixo. Duplo sentido, horror na ala feminina mais reaça, ou mais religiosa, alvoroço do chefe e do subchefe, reunião de diretoria, o escambau. Mas vingou, depois de muita discussão tacanha. Argumento triunfante: o papa estava dando o que era dele e ninguém tinha nada com isso. Com essa pequena vitória dos progressistas, desgrilava-se a definição, e ela firmava jurisprudência, passando a integrar o banco de definições para ANEL enquanto a visita de Sua Santidade ao nosso país não caísse no esquecimento e o anel não fosse torrado por algum espertinho. Pois era anel mesmo, de usar no dedo.
Outra do Broinha: “Resposta de patrão a empregado pedindo aumento”, três letras — NÃO. Quase o despediram, mas foi publicada. O contramestre da editora rubricou a autorização com um sorriso amarelo no rosto. Uma de minha própria lavra, horrível: “A cobrinha contraceptiva”, três letras — DIU. Do Caramuru, colaborador externo, tétrica: “Colega da faca”, seis letras — COLHER. Por sinal, esse produtivo free lance estabelecera laços de parentesco para todo o faqueiro. A colher, por exemplo, era colega da faca, como vimos, prima da concha e irmã da espátula para peixe.
Dei apenas quatro exemplos (lá se vão vinte e sete anos, minhas amigas, não me lembro de tudo), mas a verdade é que ao longo do expediente o grilador verificava dezenas de definições sobre os mais variados assuntos, pesquisando direto em dicionários e enciclopédias. Isso sem falar em jornais, revistas ilustradas, suplementos literários etc., e na incessante troca de idéias e opiniões entre os mais de trinta colegas envolvidos na feitura das revistas.
De tempos em tempos, griladores e definidores quase saíam no tapa para resolver questões de orgulho ferido (de ego, diríamos hoje). Nesse aspecto, uma do Luís Carlos: “Meio de transporte extinto no Rio de Janeiro”, cinco letras — BONDE. Chazinho grilou: “Eu ainda pego bonde todos os dias para ir a Santa Teresa. Favor refazer a definição.” Luís Carlos respondeu, tudo sempre por escrito: “O bonde de Santa Teresa não é bem um boooonde.” Chazinho: “Então é o quê?” Luís Carlos: “É um bondinho.”
Isso rendeu umas duas horas de bate-boca exaltado. E só não resultou em morte porque socorremos o Chazinho a tempo. Mas a definição estropiada foi acatada pelo subchefe e passou.
Fiquei nisso um ano e meio, ora grilando, ora definindo, sem arrumar encrenca com nenhuma das duas facções. Mas quando caí na besteira de definir CASA PRÓPRIA como o “sonho do operário brasileiro”, um MR-8 do tamanho de um bonde da história — agora, sim — deu-me um puxão de orelha e disse que o nosso trabalhador sonhava muito mais alto; e, mais do que sonhar, exigia a ditadura do proletariado. Casa própria era coisa de reaça, disse ele. Ciente, murmurei, cabisbaixo, mas xingando comigo mesmo o brutamontes.
Não era excesso de veleidade para um passatempo tão simples. Por incrível que pareça, soubemos que os donos da firma tinham os seus próprios leitores, e estes cuidavam para que não houvesse, através de definições meio marotas, ofensas ao regime militar. Ouvíamos a todo momento que as revistas de palavras cruzadas faziam um sucesso brutal nos quartéis.
O que importa é que ali fiz amigos da mais alta qualidade, e aprendi muito, nessa de estar constantemente às voltas com pesquisas temáticas. Qualquer que seja a opinião das pessoas sobre palavras cruzadas, nosso trabalho na editora era bastante diversificado, com profissionais de gabarito e gente que lia muito. Tanto que dali fomos parar nas melhores editoras cariocas, com invejável experiência na preparação e revisão de originais, além dos grandes craques em diagramação e arte-final. Hoje todo esse pessoal deve dar show pilotando um micro. Outros, como eu, esticaram até a tradução e a redação, e alguns poucos tornaram-se editores de relativo sucesso.
(Marechal Hermes, 19.1.2007)
Ao contrário do que alardeiam muitos jogadores de futebol quando contratados por um novo clube, eu não sou revisor desde criancinha. Já entrei burro velho no ramo editorial — aos trinta e um de idade —, como conferente e grilador de palavras cruzadas. Tive de aturar, por causa disso, o preconceito dos intelectuais da minha patota em Marechal Hermes. A turma da Esquina do Estabaco torcia o nariz a esse tipo de passatempo (ou perdetempo, como preferiam dizer), tachando-o de cultura inútil. Como é que um leitor de James Joyce e Guimarães Rosa, indagavam, podia sujeitar-se a tal diluição literária? (Diluição, aqui, numa clara referência a Ezra Pound e sua teoria sobre os diluidores nos gêneros narrativos e no fazer poético. Os caras iam fundo, não tenham dúvida.)
Sei que não devem saber o que é um grilador de palavras cruzadas. Eu também não sabia. Era jargão da editora e tinha tudo a ver com o sentido figurado de grilo. Nossa tarefa consistia em detectar e questionar os grilos de conteúdo nas definições das palavras que se entrecruzavam neste ou naquele diagrama. A criação dos diagramas, com os termos a serem definidos dispostos na página, era terceirizada.
Vai um exemplo, dos mais polêmicos na época. Quando, em 1980, João Paulo II visitou o Rio de Janeiro, Broinha, um dos nossos, não quis saber de conversa e definiu: “O papa deu o dele no Morro do Vidigal”, quatro letras — ANEL. A seção veio abaixo. Duplo sentido, horror na ala feminina mais reaça, ou mais religiosa, alvoroço do chefe e do subchefe, reunião de diretoria, o escambau. Mas vingou, depois de muita discussão tacanha. Argumento triunfante: o papa estava dando o que era dele e ninguém tinha nada com isso. Com essa pequena vitória dos progressistas, desgrilava-se a definição, e ela firmava jurisprudência, passando a integrar o banco de definições para ANEL enquanto a visita de Sua Santidade ao nosso país não caísse no esquecimento e o anel não fosse torrado por algum espertinho. Pois era anel mesmo, de usar no dedo.
Outra do Broinha: “Resposta de patrão a empregado pedindo aumento”, três letras — NÃO. Quase o despediram, mas foi publicada. O contramestre da editora rubricou a autorização com um sorriso amarelo no rosto. Uma de minha própria lavra, horrível: “A cobrinha contraceptiva”, três letras — DIU. Do Caramuru, colaborador externo, tétrica: “Colega da faca”, seis letras — COLHER. Por sinal, esse produtivo free lance estabelecera laços de parentesco para todo o faqueiro. A colher, por exemplo, era colega da faca, como vimos, prima da concha e irmã da espátula para peixe.
Dei apenas quatro exemplos (lá se vão vinte e sete anos, minhas amigas, não me lembro de tudo), mas a verdade é que ao longo do expediente o grilador verificava dezenas de definições sobre os mais variados assuntos, pesquisando direto em dicionários e enciclopédias. Isso sem falar em jornais, revistas ilustradas, suplementos literários etc., e na incessante troca de idéias e opiniões entre os mais de trinta colegas envolvidos na feitura das revistas.
De tempos em tempos, griladores e definidores quase saíam no tapa para resolver questões de orgulho ferido (de ego, diríamos hoje). Nesse aspecto, uma do Luís Carlos: “Meio de transporte extinto no Rio de Janeiro”, cinco letras — BONDE. Chazinho grilou: “Eu ainda pego bonde todos os dias para ir a Santa Teresa. Favor refazer a definição.” Luís Carlos respondeu, tudo sempre por escrito: “O bonde de Santa Teresa não é bem um boooonde.” Chazinho: “Então é o quê?” Luís Carlos: “É um bondinho.”
Isso rendeu umas duas horas de bate-boca exaltado. E só não resultou em morte porque socorremos o Chazinho a tempo. Mas a definição estropiada foi acatada pelo subchefe e passou.
Fiquei nisso um ano e meio, ora grilando, ora definindo, sem arrumar encrenca com nenhuma das duas facções. Mas quando caí na besteira de definir CASA PRÓPRIA como o “sonho do operário brasileiro”, um MR-8 do tamanho de um bonde da história — agora, sim — deu-me um puxão de orelha e disse que o nosso trabalhador sonhava muito mais alto; e, mais do que sonhar, exigia a ditadura do proletariado. Casa própria era coisa de reaça, disse ele. Ciente, murmurei, cabisbaixo, mas xingando comigo mesmo o brutamontes.
Não era excesso de veleidade para um passatempo tão simples. Por incrível que pareça, soubemos que os donos da firma tinham os seus próprios leitores, e estes cuidavam para que não houvesse, através de definições meio marotas, ofensas ao regime militar. Ouvíamos a todo momento que as revistas de palavras cruzadas faziam um sucesso brutal nos quartéis.
O que importa é que ali fiz amigos da mais alta qualidade, e aprendi muito, nessa de estar constantemente às voltas com pesquisas temáticas. Qualquer que seja a opinião das pessoas sobre palavras cruzadas, nosso trabalho na editora era bastante diversificado, com profissionais de gabarito e gente que lia muito. Tanto que dali fomos parar nas melhores editoras cariocas, com invejável experiência na preparação e revisão de originais, além dos grandes craques em diagramação e arte-final. Hoje todo esse pessoal deve dar show pilotando um micro. Outros, como eu, esticaram até a tradução e a redação, e alguns poucos tornaram-se editores de relativo sucesso.
(Marechal Hermes, 19.1.2007)