O Espelho  Mágico
(Reflexões a bordo de um navio -2)

 
 
 
Nessa viagem de navio que fiz, de Santos até Buenos Aires, passando por Itajaí (SC) e Montevidéu, descobri coisas sobre mim que desconhecia ou não tinha prestado atenção. E isso graças a uma de minhas companheiras de viagem.

Já contei antes, que viajei levando Clarice Lispector na bagagem, mas além dela estive acompanhada por mais de duas mil pessoas, entre tripulantes e passageiros. E uma em especial foi minha companheira, pois acertamos juntas a viagem, viajamos em poltronas contíguas no ônibus e ocupamos a mesma cabine no navio.  O nome não importa, mas vou chamá-la de Maria, que além de ser parte de seu nome, foi como ela me chamou o tempo todo durante o Cruzeiro. Sou chamada de Maria por um número restrito de pessoas, todos da minha família. Mas ela é da família, ou quase. Mulher de primo, prima é. Eu não me importei, mas achava esquisito quando as outras pessoas também me chamavam assim. Foi o que aconteceu. Não percebia que estavam se dirigindo a mim. Pois foi ela, a Maria que me chamava de Maria, quem me disse uma coisa surpreendente e que me fez refletir bastante.

Disse-me ela, lá pela metade do Cruzeiro, que estivera observando o quanto eu gostava de me olhar no espelho o que aparentemente era uma contradição, já que eu tinha horror em ser fotografada. Disse-me ainda que tinha horror de se olhar no espelho e eu completei: Mas adora ser fotografada.
Depois de concluir que nós duas éramos boas observadoras uma da outra, pensei a respeito – a cabine, embora fosse confortável, era pequena e tinha três grandes, espelhos – por mais que eu me escondesse não tinha jeito de não me ver. Mas acabei concordando – não tenho medo de espelhos.  Quando olho no espelho e penso que estou me vendo, me sinto uma pessoa viva, expressiva, gosto do que vejo. Mas quando olho meu retrato penso que sou um espécime empalhado, horrível. Alguém sem um pingo de vida e quando me dizem oh, como você ficou boa nessa foto !  só consigo pensar Deus, eu sou assim sou horrível?
 
 
 
 



Minha amiga diz que detesta espelhos, mas que adora fotografar. Eu digo que ela adora ser fotografada, porque tem que estar na foto, e a foto tem que sair do jeito que imaginou, se não ela diz que você não sabe fotografar. É lógico que sendo assim a nossa parceria fotográfica não iria durar muito e quando eu me recusei a fotografá-la com um simples não, sem explicação ela, que é uma mulher inteligente, logo compreendeu e não me pediu mais. Mas eu a ouvi dizendo que eu tinha ficado emburrada, o que não é verdade. Em casos assim nunca fico emburrada (tem algo a ver com burro?) apenas digo não se o que estou fazendo não está me agradando.

Perguntei a ela a razão de sempre querer estar na foto e a resposta foi: para provar que estive aqui. Mas para quem, pensei. A quem pode nos interessar provar que estivemos aqui ou ali? Quem vai querer ver mil fotos de uma viagem onde não esteve? Ela concordou parcialmente comigo, o marido certamente não se interessaria, mas o filho sim faria mil perguntas e ela responderia explicando a foto. Só não consegui compreender a razão dela querer a minha companhia na maioria das fotos.

Mas nessa história toda, de espelho versus fotografia, o que ainda não consegui assimilar foi uma frase que ela me disse: É, você está sempre olhando no espelho, mas tem hora que só olha, parece que nem se vê, está longe, em outro mundo. Fiquei deveras preocupada. Pelo que a literatura nos conta, quem não se vê no espelho, ou é vampiro ou está morto. Examinei bem meus caninos e não me pareceu promissores para o primeiro caso, no en tanto a segunda opção me deixou preocupada: Serei eu uma morta viva que ora tenho minha imagem refletida, ora não, em um viveemorre permanente?

No entanto havia entre nós um pacto, ora silencioso, ora não. Sempre que passávamos, nos corredores, por uma face espelhada do lado externo dos elevadores, parávamos e nos admirávamos – o espelho nos devolvia uma imagem deveras consoladora, magras e bonitas como a gente só é aos vinte anos. Ela até tentou se fotografar, mas não deu certo. Mas o bom é que mostramos para todos os que pudemos a magia do espelho milagroso e nem que tenha sido por um momento fugaz fizemos uma viagem ao passado pelo túnel  espelhado do tempo. Um túnel mágico que nos fazia reviver a juventude perdida. E levamos muitos por esse túnel conosco.