AS MÃOS DE MEU PAI

Há algum tempo, escrevi uma crônica, publicada neste site, intitulada “As Minhas Mãos”. Entre os generosos comentários recebidos, estão o do Prof. Raimundo Antônio Lopes e o da Prof.ª Edna Lopes, professores e intelectuais (poetas, cronistas, contistas, críticos, enfim, autores dos mais variados gêneros literários). Edna já me mandara um texto de sua autoria sobre “As Mãos do Meu Pai”, belíssima poesia que me emocionou e me deixou com um certo remorso: entre tantos temas abordados, nunca havia me lembrado de falar sobre as mãos do meu pai. Agora o faço como uma espécie de resgate das lembranças que guardo de um período feliz de minha vida.

- x – x – x –

AS MÃOS DO MEU PAI

Francisco Obery Rodrigues

As mãos de meu pai eram mãos de um sertanejo de Sobral, Ceará, por nome de Francisco Peregrino Rodrigues, que um dia, ainda moço, abandonou o campo em um pequeno distrito cearense para vir tentar uma vida melhor na cidade de Mossoró, para onde já haviam emigrado muitos dos seus parentes, inclusive primos legítimos, que o acolheram bem e com os quais sempre manteve boa amizade. Aquelas mãos não apresentavam a rudeza de quem, certamente, dedicou sua mocidade às atividades do campo, mas tinham as marcas do trabalho.

Toda uma numerosa colônia sobralense se formou em Mossoró, os primeiros chamados pelo tio deles, Cel. Miguel Faustino do Monte, que viera anos antes e aqui prosperara e se tornara um grande empresário, talvez o maior da época (final do século dezoito e algumas das primeiras décadas do século dezenove). Tendo chamado vários sobrinhos, no rastro destes foram vindo muitos outros, parentes ou não. Meu pai, com vinte e alguns anos, pouca instrução, mas inteligente, teria sido acolhido na casa do primo José Rodrigues de Lima, onde morou por poucos anos, durante os quais ocupou diversos empregos, entre os quais o de eletricista, na Usina Elétrica montada por Miguel Faustino e a ele pertencente. Nesse tempo, trabalhou com um colega, que chamava apenas de Samu, este já experiente, na reforma das instalações elétricas de nossa Catedral. Por volta de 1913/14, viajou a Sobral para se casar com Antônia Ferreira Gomes (que mudou, pelo casamento, o nome para Antônia Ferreira Rodrigues), esta moradora da povoação de São José, do citado município, vindo para Mossoró de navio e desembarcando no porto de Areia Branca. E já em 26 de janeiro de 1915 nascia o primeiro filho, José Augusto Rodrigues, a quem se seguiram outros nove, inclusive eu, nascido quase dez anos depois de José, em 20 de setembro do ano de 1924.

No final da década de 20, com saudades dos pais e de sua terra, meu pai empreendeu uma ousada viagem, a cavalo, até Sobral, a mais de 500 km, em companhia do primo Antônio Rodrigues do Monte. Seria esta sua última viagem à terra natal.

Perdendo o emprego anos depois, acho que por algum desentendimento, conforme dava a entender, pois tinha o pavio curto, enfrentou uma fase de muita dificuldade para manter a família, inclusive para educar o primogênito, José. Contava minha mãe que o primo José Rodrigues, já rico, veio em seu socorro, cedendo-lhe algumas máquinas de beneficiamento de café, milho e sal, que ele montou por trás da casa de alvenaria, relativamente grande, que construiu com imensa dificuldade, ele próprio trabalhando na obra. Foi bem sucedido na fábrica, porém, ousado como era, montou ainda uma serraria e tentou – lembro bem - a fabricação de outros produtos que, então, vinham do Sul, alguns importados, mas as máquinas que conseguira adquirir eram um tanto rudimentares e não teve sucesso. Era o proprietário, mas trabalhava como um operário, com as próprias mãos, de modo que, constantemente, encerrava o expediente já tarde da noite, muito cansado. As máquinas eram movidas por motores elétricos, cujas polias eram acionadas por correias de sola. Com o uso, elas enfraqueciam e se partiam com um forte estalo. Ele então cortava, com uma faca amolada, um pedaço de uma peça de sola, que já comprava com essa finalidade, e, com suas mãos, munido dos instrumentos necessários, as emendava.

Essas mãos, que tive oportunidade de segurar muitas vezes, eram grossas e firmes, com alguma calosidade, como as de um operário. Quando ainda menino, gostava de pedir-lhe para acompanhá-lo até a calçada do senhor Chico Apolinário, onde costumava se reunir para conversar e tomar um cafezinho uma turma de amigos. Acompanhava-o a pé, segurando em sua mão, mas, quase sempre, no regresso, por volta das nove e meia da noite, voltava em seus braços, sua mão esquerda, quente, segurando-me pelas costas, o que me dava muito conforto e prazer. Entretanto, talvez não habituado a recebê-los, pela rusticidade da vida rural, não era dado a manifestações de carinho com os filhos, o que não significava falta de amor, pois este morava em seu coração, capaz de qualquer sacrifício pelo seu bem estar, inclusive pela sua educação. Para tanto, sua mente e suas mãos não poupavam preocupações e esforços. Suas dificuldades para manutenção de José no Ginásio Diocesano Santa Luzia foram imensas. Durante um período, as atividades do Ginásio foram suspensas, devido a problemas financeiros. As famílias mais abastadas, então, mandaram seus filhos para Natal, Fortaleza e até Recife, e ele foi, com José, assistir ao embarque do trem para Areia Banca, em cujo porto embarcariam para Recife vários alunos, a fim de continuarem os estudos. Então aconteceu um episódio que ele próprio me contava, emocionado: um dos seus primos ricos, seu amigo, disse-lhe, quando o encontrou chorando porque o Ginásio fora obrigado a fechar as portas: - “Chico, deixe de besteira. Compre um jumento com um par de ancoretas e bote o menino para vender água nas casas”. Ao que ele respondeu: - “Não, se Deus quiser o Ginásio vai reabrir e ele voltará a estudar”, o que de fato aconteceu.

Apesar de sua pouca instrução, mas dotado, repito, da inteligência que Deus lhe deu, e com a vida dedicada exclusivamente ao trabalho, conseguiu deixar para a família um modesto patrimônio em imóveis, motivo de, certa vez, um nosso vizinho e seu amigo perguntar-lhe: Compadre, como é que eu, ganhando mais do que você, não consigo possuir o patrimônio que você tem? E ele respondeu, sorrindo: “Oh, compadre, veja a vida social que você leva, de constantes festas, veraneios na praia de Tibau e outros prazeres, e compare com a minha, totalmente devotada ao trabalho e ao convívio simples com meus amigos e minha família, e tire suas conclusões”.

A última vez em que vi suas mãos, estavam elas cruzadas sobre o corpo inerte, tendo ele falecido aos 68 anos. Ao vê-las, tive vontade de beijá-las, mas a timidez me impediu. Sua morte, que assisti, deu-se em casa, como era costume na época. Não havia as UTIs hospitalares, e os médicos tratavam os enfermos nas próprias casas. Debateu-se muito, como querendo vencê-la. A certa altura, não me contive e gritei alto: “Papai!” Sei que ele ouviu, porque abriu os olhos por um instante, e logo a seguir expirou. Foi um duro golpe para toda a família. A doença que o abateu, atualmente seria facilmente curável.

Alguns dias depois, meu irmão, que já possuía um automóvel, chamou-me para dar uma volta na cidade, tentando distrair-me. As ruas e praças de Mossoró me pareceram, então, as de uma cidade fantasma. Custei a acostumar-me com tamanha ausência.

Meu pai foi para mim, assim como para o meu irmão José Augusto, exemplo de obstinação e de dignidade. Para a educação de José, foi tão grande seu esforço que chegou a sensibilizar o então diretor do Ginásio, Cônego Amâncio Ramalho. Na minha vez, já não lhe exigiu igual sacrifício.

Natal, 16.01.2012, data do seu 126º ano de nascimento.

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 16/02/2012
Reeditado em 18/02/2012
Código do texto: T3502505