Cuide de sua vida
“Feliz foi Adão que não teve sogra”, diz jocosamente nosso povo. Claro que se trata de brincadeira sobre interpretação literal do texto bíblico. Nessa linha de leitura, haveria de ser um tédio viverem somente os dois num paraíso suficientemente espaçoso para abrigar uma multidão. Que novidade ia ter um para contar ao outro, no fim do dia? Pior que a deles, só a situação de Robinson Crusoé, na sua ilha, ao lado do selvagem Sexta-Feira, a quem se viu forçado a ensinar inglês para ter com quem conversar.
Por razão diferente, no entanto, ocorre-me que, apesar da solidão, Adão e Eva devem ter formado um casal feliz. Se houve aperreação com que não precisaram se preocupar foi com o falatório de pessoas, que parece terem nascido para bisbilhotar o que acontece aos que se encontram à sua volta. Não foram azucrinados, no jardim do Éden, pelos que investigam, até com lupa, o que se passa com quem teve a má sorte de viver ao alcance de sua língua.
A vida é repleta de ocupações e problemas tantos que, ainda com grande trabalho, cada um mal consegue dar conta dos próprios. Alguns gênios, entretanto, parecem dispor de capacidade e tempo para controlar também e, talvez sobretudo, a vida alheia. Com a posterior e irreprimível necessidade de divulgá-la. Trata-se, quase sempre, não de fatos importantes, mas de invencionices, fantasias ou fofocas repletas de maldade. Tudo proporcional à pequenez de alma do maledicente. Entretanto é difícil existir quem não lhes dê crédito. E, como o gosto de mexericar não se restringe a dois ou três, o comentário se expande em proporções impensadas. Quando lesivas à dignidade, arrastam a honra da vítima para o cesto de lixo. Nunca mais ela será vista com os olhos de antes. De pouco adiantam desmentidos. Sempre persistirá nem que seja uma sutil desconfiança.
Conta-se que São Felipe Neri (1515-1595), o alegre confessor de Roma, recebeu, certo dia, uma senhora que confessou ter falado mal da vizinha. Ele aconselhou-a bondosamente e recomendou que, como gesto penitencial, matasse uma galinha, a depenasse, soltasse as penas no alto de uma colina, e voltasse, depois, para vê-lo.
– “Pronto”, falou ela, de regresso, horas mais tarde, “cumpri a tarefa que o senhor me deu”.
– “Ainda não”, disse ele. “Agora volte lá, recolha todas as penas e traga-as aqui”.
– “Isso é impossível”, desesperou-se a pobre mulher. “O vento espalhou-as por toda a cidade”.
– “Pois é justamente o que acontece com a boa fama da pessoa de quem falamos mal”, ensinou o santo. “Ainda que confidenciemos a um único amigo, daí a pouco, a cidade inteira estará sabendo. Então, não há mais como recuperar o bom nome que nosso comentário destruiu”.
A mulher tanto apreciou a lição, que não se constrangeu em ela mesma divulgá-la para que mais pessoas tirassem proveito. Sabia a boa senhora não ser ela a única a fazer fofoca. A língua, adverte São Tiago (Tg 3,2-11), é uma arma terrível.
A moderna mídia colocou o mundo inteiro na minha mão. Que penitência daria São Felipe Néri para a fofoca eletrônica?