Dois beijos

Presenteou-me a vida não com muitos, mas com bons amigos. Alguns, melhores do que mereço. Amigos cuja companhia o passar dos anos não submerge na rotina, mas renova como viço de planta nova.

Lá nos distantes idos dos anos sessenta conheci um. Ocupava o microfone da mais importante emissora local de rádio. Era exemplar no cumprimento de suas tarefas, que desempenhava com dignidade e nobreza iguais às de um porta-voz da BBC de Londres.

Eram outros os tempos, em nada parecidos com os de hoje. Já lá se vão quarenta e três anos, espaço de uma vida. Encontrávamo-nos com a assiduidade que permitiam compromissos da agenda rala e os espaços amplos de uma cidade rusticana em que, para a gente se topar, bastava sair à rua.

Separou-nos a vida, senhora de imprevistos e dissabores. Por completo descuido ou propósito insondável, ela conseguiu embaraçar a urdidura do fio das Parcas, guiando-nos por rumos ditosos ou adversos, não traçados por nosso alvitre.

Não feneceu, contudo, em nenhum momento, a amizade; que esta nem os anos vividos nem as provações superadas lograriam mesmo alterar. Se mudança houve, foi para amadurecer entre nós uma estima que o tempo só aduba e fortalece.

As ruas desta cidade querida, em que Deus nos permitiu viver, teimam em fazer-nos ocupar amiúde a mesma calçada. Seu sorriso, de longe, apenas nos avistamos, irradia um facho de brilho, que doura de luz um fugidio encontro de minutos.

Num desses gratos momentos, na espontaneidade que nada ensaia, brindou-me com afirmação repentina, capaz de me fazer surpreso e edificado. Quando me afastava, recomendei: “Dê um beijo na Cida”. Ele, no estalo, o rosto inteiro iluminado: “Dou dois: um seu e um meu”.

Quando nos atinge o inesperado, quedamo-nos absortos num vácuo de surpresa, que nos colhe sem aviso. Prossegui meu caminho, garimpando agora reflexões antigas, que, de repente, se faziam novas: “Que coisa! Depois de anos a fio ouvindo e aconselhando casais à beira de um rompimento sem volta, me aparece assim na rua, sem aviso nem preparo, clara como manhã de sol, uma mostra do que devia ser a coisa mais natural do mundo. Como o amor de marido e mulher que une esses dois”.

Estão juntos há mais de cinquenta anos. Já casaram os três filhos. Desfrutam hoje daquele tempo que Deus concede a avós para contar aos netos uma infância e adolescência, há muito, vencidas. Dos primeiros tempos de casados o romantismo e a paixão cristalizaram um amor maduro e generoso. Feito de entrega e desprendimento, sem desilusão nem volta. Que se revela autêntico em cada momento, por desprezível que pareça.

Pegou-me desprevenido a declaração simples e pura, sem rebuço nem alarde, de uma grandeza que não tem vergonha de se mostrar. De algo puro, vivido no dia a dia. Que dispensa roteiros de propaganda, porque a verdade não carece de script para consumo externo. Isso, aliás, sempre me deixaram ver, embora nunca se preocupassem de mostrar. O que é transparente não precisa de vitrine. Está à vista de quem observa com atenção. Basta ter olhos e abri-los.

Padre Orivaldo Robles
Enviado por Padre Orivaldo Robles em 27/01/2012
Reeditado em 27/01/2012
Código do texto: T3464877