O anjo de plantão

Para os antigos, bêbado e criança têm especial proteção de Deus. O bêbado da roça era um pobre homem, que trabalhava a semana toda para, no sábado, tomar sua cachaça. Até o cavalo o compreendia. De volta, pela bambeza das rédeas sabia que precisava afrouxar o passo. Quanto cavaleiro chegou a casa dormindo na sela! Vez por outra caía, mas não se machucava. Dos bêbados motorizados de hoje, porém, Deus largou de mão. Não paga mais hora extra ao anjo da guarda. Nem fornece anjos auxiliares. Porque criança e bêbado, além do anjo titular, conta com equipe de apoio. Como canta Zé Geraldo, “hoje o homem criou asas”. Pensa que é dono de tudo e apronta o que lhe dá na telha. As conseqüências os noticiários jogam, todos os dias, na nossa sala. O mundo hoje é urbano e globalizado. Não mais aquele da nossa infância.

Ao contrário de bêbados ao volante, crianças continuam cuidadas por anjos. É raro que se firam gravemente. Se bem que, hoje em dia, ser criança tenha ficado um tanto chato. Cadê a meninice de outrora, decantada por poetas? Pais parecem tentar obter nos filhos o sucesso que não conseguiram. Impõem-lhes mil atividades. Não os deixam ser crianças. Ou então os enchem de brinquedos que já vêm brincados. Basta apertar botões.

Nossa infância apresentava um vasto leque de alegrias e de surpresas. De obscuros perigos também. Pai e mãe nem sempre estavam perto. Mas o anjo da guarda não descuidava. Se preciso, reunia o esquadrão de apoio. Sozinho nem sempre ele dava conta.

Como em Jales (SP), então um vilarejo com meia dúzia de casas. Eu tinha oito anos. Usava calças curtas. Com um colega fui buscar cacos coloridos de vidro no buracão em que a destilaria descartava garrafas quebradas. Chovera e o chão estava liso. Escorreguei e bati o joelho no chão. Levei um corte horrível. Em borbotões o sangue começou a descer pela perna encharcando a botina. Mais pelo susto que pela dor, botei a boca no mundo e rumei para casa. A mãe saiu-me ao encontro, desesperada. O único médico morava a três quadras. Naquela hora pareceu longe como o Cazaquistão. Ele explicou: “Duas veias foram rompidas. Três centímetros acima, você teria perdido o movimento da perna”. Sou grato ao anjo do plantão daquela manhã.

De volta a Polôni (SP), fomos morar no mesmo sítio. Aos onze anos, em companhia de outros meninos, eu ia à escola num cavalo que deixava no quintal da tia Rosa. Para eu voltar, ela apertava a barrigueira do arreio. Eu não tinha força bastante. Um dia, resolvi cumprir eu mesmo a tarefa. Pior: depois fui disputar corrida com um colega, que vivia elogiando sua eguinha baia. Antes dos primeiros cem metros, o mundo virou de cabeça para baixo. Por sorte, era um areão comprido. A areia me encheu boca, olhos, nariz, cabelos, tudo. Comigo preso à barriga, o cavalo deu de saracotear feito um energúmeno. Quando conseguiu se livrar de mim, desembestou. Mané Melo, cavaleiro mais experiente do grupo, saiu em disparada e o trouxe de volta. A essa altura, loros, estribos, coxinilho, baixeiros, arreio, até as rédeas estavam em estado lastimável. Os amigos ajeitaram as coisas como foi possível. Suprema humilhação: voltei na garupa da eguinha baia, puxando meu cavalo por uma corda. Mas o anjo da guarda deu prova de eficiência. Não sofri um arranhão.

Quanto aos bêbados não sei, mas criança, fica provado, goza mesmo de proteção especial.

Padre Orivaldo Robles
Enviado por Padre Orivaldo Robles em 14/01/2012
Reeditado em 16/01/2012
Código do texto: T3440197