Mitologias do menino


Quem nasceu atrás de um cemitério, como este cronista, não tem muito motivo para correr de assombração. O que me assusta mesmo são os vivos, são coisas como o engodo e a malícia republicana dos vivos contra o cidadão comum. Isso é que dá um frio de morte na espinha.

No velho Caju da minha infância, ao contrário, depois que a noite subia, beirava o trivial deparar com noivas de cemitério paquerando os mais incautos na praça redonda do bairro; um ou outro defunto tomando cafezinho no boteco da esquina, na maior conversa com estivadores e marujos comunistas, vivos; e coveiros sem cabeça espiando (não me perguntem como) por sobre o muro do campo-santo. Tudo isso sem falar no pontualíssimo bonde das madrugadas, repleto de almas do Carmo, que partia da ponta do Caju em direção à Avenida Brasil... mas cortando caminho pelo cemitério, ou seja, sem usar trilhos nem suspensórios elétricos, uma verdadeira farra de além-túmulo.

(Muito mais pavoroso do que ele era o bonde de São Januário em dia de jogo do Vasco da Gama. Esse, sim, era de amargar. Urubu-mirim, escondia-me debaixo da cama quando ele passava.)

Era exatamente assim, pelo menos, que o endiabrado menino ruivo do número 25 da Rua Carlos Seidl gostava de costurar a conversa dos mais velhos, o clima dramático e muitas vezes soturno das radionovelas que sua mãe acompanhava com o coração na mão, os casos de mistério do Almirante — um campeão de audiência, e aqui audiência tout court, nos anos 1950 — e as histórias que dois primos seus, já adolescentes, traziam da rua. Ou do outro mundo mesmo, na versão do garoto de cinco anos, pois todo fim de semana defendiam uns trocados limpando os mausoléus da ala mais rica do cemitério.

Um dia, morto de inveja, armei um tremendo barulho no portão da vila de casas portuguesas, e meus primos concordaram em levar-me com eles. Enquanto os dois capinavam ou lavavam por fora as paredes daqueles grandes abrigos de mármore, eu entrava e saía à vontade dos mausoléus, curioso de tudo, sem experimentar o menor calafrio diante da eternidade muda e impassível. Sem mentira, nada me assustava ali. De tempos em tempos, chegava a ouvir profundos suspiros vindo do sepulcro onde devia estar o defunto ou os ossos do defunto, mas nem me passava pela cabeça que aquilo não fosse rigorosamente normal. De fato, parecia haver um concerto perfeito entre mortos e vivos naquele delicioso pedaço do Caju.

Se querem um exemplo, dos mais irrisórios, lá vai. Uma noite, faltando luz no bairro, minha tia abraçou um ladrão dentro de casa pensando tratar-se do marido, que sempre voltava tarde do trabalho. Quando se inteirou do engano, desmaiou com um grito, acordando os vizinhos da pequena vila. Estes logo acorreram, com a última edição revista e vergonhosamente ampliada da Lei de Linch, e arrebentaram o pobre coitado. Não sendo um crime de morte, ninguém no Caju chamava a polícia nessa época. Resolviam tudo na marra e no cacete.

Se em vez do ladrão fosse uma alma penada, dessas que também vivem na sombra, tenho certeza que minha tia teria passado um cafezinho ou um chá de cipreste para ela, e que ficariam as duas no maior papo do mundo até a luz voltar.


[2.4.2005]