O olho do consumo
Na minha infância, ouvi aquilo que muita gente deve também ter escutado. Apesar de pobres, desfrutávamos, graças a Deus, de suficiente alimento na mesa. Mas éramos educados a evitar o desperdício. Se enchíamos o prato e não dávamos conta de comer tudo, a mãe observava: “Você tem o olho maior do que a barriga”. O mesmo pode-se dizer hoje de muita gente. E não se trata de criança, não. Continuo afirmando que a ganância é um saco sem fundo. Quanto mais nele despejamos artigos que vamos adquirindo, tanto mais ele espicha no comprimento e na largura. O espaço acaba sempre maior.
Informam os meios jornalísticos que o endividamento do brasileiro atingiu nível recorde. A dívida total das nossas famílias “corresponde a 40% da massa anual de rendimentos do trabalho e dos benefícios pagos pela Previdência Social no País”. Nenhum indício de estabilização, menos ainda de queda. “Em dezembro de 2009, a dívida das famílias era de R$ 485 bilhões; subiu para R$ 524 bilhões em abril do ano seguinte e, em abril de 2011, atingiu R$ 653 bilhões”. A razão? Volúpia de comprar mais e mais coisas, ainda que desnecessárias. O consumidor é agredido por vigoroso bombardeio de bancos, financeiras e lojas, dia e noite. Com a conversinha de crédito a perder de vista, de prestação que cabe no bolso, de desconto no holerite ou no benefício da aposentadoria ou da pensão. Porque muitos compram mais do que podem, o endividamento familiar já compromete 40% de toda a renda anual do País.
Quem tem mais experiência de vida deve ter percebido a progressiva degradação de qualidade dos produtos atuais. Tempo houve em que, depois longo uso, um objeto passava para o filho; deste, para o neto, terminando em descarte não por inutilidade, mas pelo enjoo de tanto utilizá-lo. Lembro a bicicleta marca Regina, adquirida por meu irmão, em 1952, para trabalhar na cidade, distante cinco quilômetros em estrada de terra. Eu gostava da inscrição “made in Czechoslovakia”. Após quase seis anos de uso diário, foi vendida, em muito bom estado, quando mudamos para o Paraná. A máquina de costura Vigorelli a mãe usou por trinta anos sem nunca levar ao conserto. Hoje, tudo é descartável ou quase. A intenção é substituir depressa: o mercado exige circulação intensa do capital. É também o motivo do lançamento das novas versões. Elas angustiam o usuário de modelo “ultrapassado”, que só vai sossegar quando adquirir o “novo”. A novidade não passa de conveniente maquiagem cosmética destinada a se tornar obsoleta logo no ano seguinte. Os gringos explicam: “É o comércio, estúpido!” Como vão aumentar seu lucro os que puxam os cordéis da economia?
Em geral, nós possuímos muito mais coisas do que as necessárias. Provavelmente todos, em algum momento do passado, fomos obrigados que nos contentar com menos bens do que hoje temos. E conseguimos sobreviver. Em alguns casos, até com maior facilidade. Ou, pelo menos, com menores preocupações. No ambiente consumista em que estamos mergulhados, porém, quem vai resistir aos apelos do mercado? Ainda que não fale, o olho maior do que a barriga argumenta: “Imagine! Com tanta coisa bonita em oferta? São até 60 prestações para pagar. Gente mais pobre já comprou; acha que eu vou ficar atrás?”
O comércio, que sabe explorar as fraquezas do consumidor, deita e rola. Está aberto o caminho para o endividamento familiar. E depois?