Cidadania

Não consigo esquecer apresentação do programa “Globo Repórter” veiculada, se não me engano, em março de 1997. O tema era trabalho infantil. A reportagem levantou o tapete que encobre nossa sujeira revelando a crueldade de uma situação que nos cobre de vergonha e nojo. Para a nossa mentalidade burguesa é chocante dar de cara com imenso bando de crianças desnutridas e maltrapilhas, esmagadas pela brutalidade de um trabalho muito superior às suas forças. Longe da escola e dos folguedos infantis, eram forçadas a assumir uma carga desumana até para ombros adultos. “Isso é vida de criança?” questionava, desesperançada, uma das pequenas vítimas. A situação despertava pesar e revolta até em profissionais da televisão, acostumados por ofício a retratar miséria e dor.

Mais surpreendente que tudo, porém, foi a resposta do garoto coberto de sujeira e de suor ao repórter, que lhe indagava o que queria ser quando crescesse. Seca como a terra que pisavam seus pés descalços, cortante como peixeira da caatinga, em duas palavras, brandiu com voz decidida e triste: “Um cidadão”.

De onde teria aquele menino arrancado a profundeza da telegráfica resposta? Quem lhe teria feito adivinhar que, bem no fundo de seu coração sofrido, residia, sim, um direito igual ao de todas as crianças que aspiram a ser alguém na vida? Que ninguém pode aceitar como normal a existência de uma criança que enxergue pela frente apenas a escuridão do nada? Como um gemido rasgando a aridez do sertão nordestino, ficou no ar o eco da feroz denúncia: infeliz do povo que não descortina futuro para a sua infância. Desgraçada da nação incapaz de abrir caminho a um só dos seus filhos que tenha, por má sorte, nascido em seu solo.

Até o padrão Globo de excelência primeiro-mundista viu-se forçado a admitir a infâmia que assola o País inteiro. As cenas mostradas não se limitavam ao Nordeste. Provinham de várias regiões, inclusive do festejado Sul maravilha. Exploração infantil basta alguém procurar que acha. De todo tipo e em todos os cantos.

Sintoma da chaga que lanha o corpo social por inteiro, muitas crianças jazem no abandono, forçadas a subsistir num mundo de miséria, privadas do mais elementar dos direitos: o de serem reconhecidas como gente. Como se alguma bruxa má lhes tivesse fechado o acesso ao convívio social de tão rica nação.

Aos ouvidos moucos de uma sociedade satisfeita consigo mesma, refestelada no conforto de salas acarpetadas, com olhos voltados para Miami, Nova York, Paris ou Milão, jamais chega o grito de uma infância desprovida de amanhã, a fim de exigir aquilo que lhe deveríamos proporcionar sem que precisassem pedir. A segurança de um futuro digno, em que se garantam condições de tomar nas mãos a condução do próprio destino, de forma alguma pode continuar sendo privilégio de uma minoria bem nascida. É o destino natural de cada homem, pela simples razão de ser pessoa. Está inscrito na natureza do seu ser o programa genético de sua dignidade, que se traduz por cidadania.

Não é possível considerar cidadão a quem não consegue escapar da miséria. A quem vagueia na indigência, sem rumo nem perspectiva de amanhã. A quem se arrasta vergado sob o fardo da desesperança, alimentando, como único projeto, a chance de se manter vivo até o dia seguinte.

Padre Orivaldo Robles
Enviado por Padre Orivaldo Robles em 19/12/2011
Reeditado em 19/12/2011
Código do texto: T3396907