O que fica do que passou
Tirante a amplitude da circunferência abdominal, a dificuldade de subir ladeira, a urgência em levantar à noite várias vezes, o esforço de fazer a memória pegar no tranco e a facilidade de chorar até em comercial de detergente, não posso dizer que os anos me pesem muito. Tempo houve em que tudo era mais fácil. Ainda assim, não me queixo. Aborrecem-me saudosistas de olhos sempre fixos no passado. Não sofro por não ter de volta o que já foi. “Tudo tem seu tempo” (Ecl 3,1). Comento situações que vivi porque me ensinaram alguma coisa. “O saber não ocupa lugar”, dizia o pai. Já ouvi que, se alguém fala: “Tenho muita experiência”, o que quer dizer é: “Já fiz muita burrada na vida”. Pode ser. Sem negar as tolices que cometi, entendo que a idade também me forneceu lições determinantes de bem viver.
Exemplo: quem viveu meia dúzia de décadas lembra como funcionavam as coisas em família. Pai e mãe davam ordens, filhos obedeciam. Não se respeitava a individualidade dos filhos? Pais eram dominadores? Havia casos, sim, não dá para esconder. Afinal poucos tinham ouvido falar de psicologia. Ainda hoje, apesar do muito que progredimos, quantos podem considerar-se verdadeiro pai ou mãe? Naquela época, então... Às crianças não se davam chances de escolha. Moradia, comida, vestuário, calçado, brinquedo, tudo era decidido pelos pais. Roupa e sapato passavam de filhos mais velhos para mais novos. Sem arrufo nem esperneio. Sequer em sonho passava pela cabeça de um adulto que criança lhe questionasse uma decisão. Não há como não reconhecer a melhora que conseguimos. Hoje, pais se empenham em acertar na formação dos rebentos. Não se permitem domesticá-los. Nem agir como ditadores.
Alguns, entretanto, talvez tenham virado o fio. Na ânsia de evitar excesso de autoridade optaram por autoridade nenhuma. O ambiente familiar virou do avesso. Antes era quartel, agora virou zorra. Há famílias em que o leme de comando foi entregue a uma gracinha de três anos. Nem fala direito, mas decide tudo. Os pais se julgam antenados. Sei. Esperem mais dez anos para ver.
Outro ponto: cedo aprendi que um homem vale tanto quanto a sua palavra. As pessoas ponderavam bem o que iam falar. Porque, uma vez proferida, palavra não tinha volta. Entrava em vigor com a força de compromisso. Testemunha, assinatura, firma reconhecida, registro público, para quê? O importante tinha sido empenhado: a palavra, que outra coisa não era senão o próprio ser da pessoa externado pela sua voz. Que garantia maior exigir? Ninguém pulava para trás desdizendo afirmação anteriormente feita. Por lucrativa que fosse a vantagem ou rendoso o interesse, honra não se negociava. Ninguém punha em dúvida este aforismo: homem que se vende, ainda que por um mísero centavo, sempre recebe mais do que vale. Bom tempo, sem dúvida, em que, de olhos fechados, se confiava no que a pessoa dizia. Quem sabe, por saudade ou anseio pela volta desse tempo foi que Thiago de Mello escreveu, no Estatuto do Homem: “Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. (...) O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino”. Em termos de recursos de comunicação hoje nos encontramos a anos-luz do passado. Ninguém há que não aprecie as fantásticas invenções da técnica e da ciência. Bom seria se o mesmo se verificasse também no respeito à verdade.