OS CAMINHOS DA VILA

OS CAMINHOS DA VILA

... e vínhamos então, saindo da praça do Correio, pelo “73” - Barra Funda, ônibus grande, vermelho e amarelo, motor GMC, subindo a São João e olhando, através dos vidros embaciados, para os luminosos de néon, que piscavam dentro da noite fria e garoenta daquela São Paulo de 1951. Atrás ficavam, o prédio dos Correios e Telégrafos, o Martinelli, os viadutos, do Chá e Santa Efigênia, o Vale do Anhangabaú, a ruas Capitão Salomão e do Seminário, com as filas dos bondes: 35 - Lapa, 19 - Perdizes, 36 - Av. Angélica... Ficavam para trás, também, a casa de lanches “Os Dois Porquinhos”, o Guanabara, o Ponto Chic; os cinemas Art Palácio, Broadway, Opera, Bandeirantes, Ipiranga e Marabá, Metro. Passava-se a Praça Júlio Mesquita, do Moraes – O Rei do Filet; à esquerda, a uma quadra, o Largo do Arouche, do La Casserole, do Mercado de Flores, do Gato Que Ri. À direita, a rua Victoria, do Tabu. Entrava-se na Barão de Limeira, da Folha da Manhã, e os luminosos iam escasseando. Lá ao fim, pegava-se a Lopes de Oliveira, à esquerda, cruzava-se a Barra Funda, do Cine Theatro São Pedro, e descia-se a Brigadeiro Galvão, chegando-se ao Largo da Banana, onde descíamos. Na verdade, a linha era Barra Funda, mas o seu ponto final era na rua Tagipuru, após subir a alameda Olga, junto à rua Martha, do Grupo Escolar Pedro II, a alguns metros do Largo Padre Péricles e do Cine Esmeralda.

Do Largo da Banana, com seus bebedouros para os cavalos e burros que puxavam as carroças de todos os tipos e para todos os fins, e também os carroções de lixo, cruzávamos as porteiras, da Sorocabana e da Santos a Jundiaí, onde trafegavam ainda composições puxadas por máquinas a vapor.

A rua da Várzea - que muitos diziam “Várgea” - margeava a via férrea, e ali já sentíamos que a cidade estava ficando para trás, que algo estava mudando. O calçamento, o casario, as fábricas, os armazéns, os botequins, e as pessoas, sobretudo as pessoas. Mais tristes, mais magras, mais mal-vestidas. Era o arrabalde, o subúrbio, a periferia.

Na rua capitão-mor (o que seria capitão-mor?) Gonçalo Monteiro, tomávamos, após uma longa e cansativa espera, o ônibus para a Vila, o “92”. Depois, a rua do Bosque, que, suponho, tivera algum bosque, algum dia, mas só víamos fábricas então. Em seguida a av. Thomas Edison (que todos diziam “Tomazedison”). Ao passar por ela, eu pensava: “o inventor da lâmpada elétrica”. Algum tempo depois vim a descobrir que ele inventara muitas outras coisas mais.

A ponte pela qual se cruzava o Tietê era de madeira, de uma só mão, suficiente para os poucos Chevrolet, Ford, Studbaker, Mercedes-Benz, que circulavam. Ali sim, às margens do outrora Anhembi de águas mais límpidas, estavam as várzeas, as chácaras, as lagoas, os campos de futebol, estes, na época da seca, pois, na época das chuvas o rio se espraiava e cobria tudo.

A Thomas Alva Edison tinha a fábrica de papel com seu cheiro fétido; tinha a igreja de Santo Antônio do Limão, do Padre Vitorino, do seu Cine Ozanam, do A.A. Açucena, um dos “timaços” da região. Terminava no sopé do morro do Piche, tendo à esquerda o caminho para a Freguesia do Ó e a direita os morros da Casa Verde. Ali também terminava a iluminação pública, de fracas lâmpadas incandescentes, em postes de madeira alcatroados.

Subia-se com lentidão o morro do Piche. Os motores eram fracos e os ônibus, bem poucos, estavam sempre lotados. Era a estrada do Mandi. Tinha o Colégio das Freiras, e após a subida, à esquerda, o Parque Radiva e as curvas do Bafo da Onça; à frente e á direita, o vale da Granja. Um pouco além, após a curva da Morte, chegava-se à Vila. Uma centena de metros após a Casa Progresso e a Padaria do “Seu” João, saía-se da estrada, subia-se a rua Isabel, e na esquina com a rua Dulce, junto ao bar do Cabral, do salão de barbeiro do Virgílio, da farmácia do Salvador, do Bar do Ditinho e da Delegacia, o ônibus fazia o ponto final. Estávamos na Vila Santa Maria.

A estrada do Mandí continuava. Lá ao longe, a Cachoeirinha. Bem mais além, a massa verde-escura da Serra da Cantareira, sob um céu muito azul. Lá atrás tinha ficado a cidade, com o cinza dos prédios, a fumaça das chaminés. Aqui, Vila Santa Maria, suas ruas de terra, seus quintais, água de poço, hortas e galinhas, muitas árvores, crianças jogando bolinhas de gude, empinando pipas, jogando uma pelada. Mulheres estendendo roupas nos varais, cantando.

Vila Santa Maria, um pedaço do interior, em paz, vivendo.

Lá atrás, a Paulicéia, cada vez mais desvairada, crescendo sem parar.

Aqui, um menino de nove anos, ainda de olhos arregalados, que estava começando a descobri-la, e que viria a amá-la por toda a sua vida.