O HOMEM QUE CHORAVA LIVROS

O HOMEM QUE CHORAVA LIVROS

Eles chegaram e se foram muito rapidamente. Não houve sequer tempo de um cumprimento, mesmo de passagem, pelas escadarias. Não consegui sequer fixar seus rostos, muito menos aferir suas idades. O homem pareceu-me mais velho que a mulher, cerca de uns vinte anos. Talvez mais. Ele, magro, cabelos ralos, muitos deles brancos. A mulher, cabelos longos, pretos, rosto redondo, tendência para a obesidade. Os dois, brancos, pálidos, brancura de apartamento, de falta de luz solar.

Não sou de bisbilhotar a vida alheia. Respeito à privacidade, a minha e a dos outros. A intimidade, para mim, ainda é sagrada, deve ser respeitada. Sempre que descobrimos a vida intima das pessoas ela é cheia de dores, de tristezas, de dificuldades, de lutas, de dramas, tragédias, desilusões. Enfim, como a de todo mundo.

Mas não houve como não vislumbrar, vez ou outra, a intimidade deles, pois a porta do apartamento do casal ficava, por vezes, aberta. Eu ia dizer, erradamente, um estranho casal. Mas seria adjetivá-los, e também, não seremos todos nós também estranhos uns aos outros? Mais que isso, não seríamos, por muitas vezes, estranhos a nós mesmos?

O que me chamou a atenção, por ligações óbvias, foi a grande quantidade de livros, revistas, jornais, gibis, que todos os dias eles iam tirando de dezenas de caixas de papelão, e amontoando no chão, pois eu não via estante alguma. Deduzi que eles teriam vindo de uma casa ou apartamento maiores, que teria provavelmente estantes ou prateleiras fixas às paredes.

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Assim termina, pelo menos para mim, esta curta história (ou estória). Discretamente eles vieram, muito pouco ficaram e discretamente se foram, quase em silencio. Ele, a chorar Machado de Assis, Castro Alves, Alencar, Lobato, Bandeira, Drummond, Sabino, Dumas, Verne, Lispector, Simenon, Steinbeck, Huxley, Rachel, Quintana, Veríssimo... — ela, a secar as lágrimas dele, feitas de letras soltas, silabas, palavras, sentenças, versos, sonetos, frases inteiras, frases incompletas... — rolavam por sua face pálida, por sua face branca, branca como uma página virgem que não fora ainda maculada por letras errantes.

Para onde teriam ido?

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