O mistério do pão com ovo

Eu, Curitiba, lanchonete da rodoviária, quase seis da manhã. Duas senhoras, já velhas e bem curitibanas, sentam na mesa vizinha à minha. E por bem curitibanas digo aquelas do rosto tipo eslavo, dos cabelos pintados num corte moderninho, e daquele jeito de vestir-se e mover-se bem aristocrático; lembram essas vilãs de novela que fazem o diabo para que seu filho não case com a moça pobre.

- E o que vamos pedir? - pergunta uma delas.

- Hum... - a outra corre o olhar pelo cardápio, coisa de um minuto. Que tal um pão com ovo, hein?

E seguem os risinhos. Risinhos cúmplices, deleitados numa tiração de sarro legítima. Tão legítima como sacanear o coitado do Charlie Brown.

E eu, ouvindo, pergunto a mim mesmo: ué, o que há de errado no pão com ovo?

Fiquei ali, recém chegado de viagem, sentado na lanchonete da rodoviária, assistindo ao amanhecer de Curitiba naquele céu escuro azul-acizentado, e filosofando: qual é o problema do pão com ovo?

Várias vezes ouvi piadas sobre. Não é de hoje nem dali. Da infância à adolescência, cruzando cidades e distâncias, testemunhei acusadores e acusados sob o mote do pão com ovo.

- Fulano come pão com ovo! - em coro durante o recreio.

- É mentira! Eu não como não!

A negativa era pronta, pessoal. Vinha lá de dentro, algo instintiva - apesar de aparentar que tanto o acusado como os acusadores não sabiam, assim como eu não sei, o que há de essencialmente errado em comer pão com ovo.

Mas parece pairar algo - o quê? - sobre um belo sanduíche à base de ovo e que o faz um prato cheio - céus, que trocadilho! - para os perversos bullings da vida.

Ora. Um pão com ovo é deveras nutritivo. O lanche fornece energia pronta e proteína de alta qualidade. E outras peculiaridades do ovo caem cada vez mais nas graças dos nutricionistas, que chegam até a recomendá-lo na base de uma unidade por dia - não é mais o vilão abominável das dietas e da boa saúde –, logo sua ingestão é salutar.

Então por que diabos o pão com ovo é tão estigmatizado?

Como tenho vestígios de científico e estou em uma fase de romper com paradigmas - veja, já comecei trocando a carteira do bolso traseiro direito para o traseiro esquerdo -, decidi por ser cobaia e chamei pela garçonete. Nas fuças das velhotas eslavas pedi em bom português:

- Quero um pão com ovo, sim?

As velhas de pronto me olharam, seríssimas. A essa altura já comiam misto quente, o lanche mais quadrado e normatizado de qualquer lanchonete, o oposto do incompreendido pão com ovo. E além do das velhas tive ainda a impressão que outros olhares de outros clientes pesavam sobre mim, o cara que pediu um pão com ovo ali, no centro de Curitiba, mal chegadas as seis horas da matina.

Então um súbito desconfiar lampejou em mim.

- Mas hein, esse pão com ovo é só ovo no pão, né?

- Sim... é só.

Bem, depois da garantia da garçonete (que não sei por que hesitou um tanto em sua resposta) eliminei a hipótese de que a má fama do lanche em questão daria-se por um acompanhamento extra porém intrínseco – quem sabe alho, quem sabe cebola, outros injustiçados em termos de culinária. Então confirmei o pedido. Ele veio em instantes, e comi-o. Prazerosamente, aliás; do jeito que um cristão come carne vermelha em Sexta-Feira Santa: cada mordida era uma explosão de sabor pelo tabu quebrado.

E depois, enquanto me livrava dos incômodos resíduos da refeição que ficaram entre os dentes, a pergunta persistiu: o que há de errado no pão com ovo?

Nesse instante as velhinhas me olharam sorrateiramente, como se eu fosse persona non grata por estar ali, eu, o cara que comeu um pão com ovo e faz cara de quem gostou à beça - e agora causa mal estar geral em quem mais está no recinto.

Para afrontá-las quis intensificar essa cara de gosto. Mas como não tenho lá muita expressividade facial creio que as assustei mais do que impressionei - tanto foi que logo elas foram embora.

Deixa estar. Só não deixo estar a dúvida que permanece no ar, crudelíssima, beirando os anais dos grandes mistérios da humanidade: o que há de errado no pão com ovo?