Uma Poetisa em Minha Praça
Era um sábado. Ela trouxe pouca bagagem e hospedou-se na velhasibipiruna no meio da praça. No primeiro andar deixou penduradas as sandálias verdes, logo acima em um longo galho inclinado, ela espalhou seus livros, pendurou-os nas verdes madeixas das trepadeiras centenárias. Escolheu um bonito vestido branco, sacou a bolsa de uma gaveta secreta do tronco carrancudo e saiu a fotografar aposentados e flores matinais pelas trilhas de Maringá.
Gostou de fotografar as intermináveis fileiras de flamboyants; os galhos desprezados pelas folhas e flores em pleno fim de inverno ás portas da primavera, desenhavam geometrias no fundo nostálgico composto pelo inconfundível e pontiagudo ponto turístico cristão da cidade. Contornou dócil o Ingá sem se importar com movimentos de braços e pernas rumo á medida ideal á sua volta. Ao invés, examinou incansável o jovem canteiro de azaléias, verificando-lhes a perfeição de diversos ângulos.
Tomou para si este chão e em seus gonçalves braços dormiu. Na janela entre dois galhos, assistia a vida noturna sem pressa, sem a curiosidade dos adolescentes. Quando a noite fez-se fria curtiu uma lã deixando apenas os dois olhos castanhos ao relento, duas sentinelas esperando alguma estrela cadente passar.
Logo pela manha, no domingo, mamãe me chamou para contar que “a minha princesa encantada da árvore” havia desaparecido. As pessoas adultas tem a sádica mania de nos deixar envergonhados de nossos próprios sentimentos! Mas mesmo envergonhado por descobrir que todo mundo já estava a par de minha primeira fascinação, não me contive e corri para a rua. O pijama de ursos coloridos, amarrotado o rosto, os olhos cheios de lagrimas e vergonha e medo. – Por quê mamãe é tão cruel? Era mesmo verdade, ela não estava lá. Os livros, as gavetas mágicas e tudo o mais haviam ido embora com ela.
Este menino não está nada bem Carmela!
Deixa o piá!
Mas tu não viste? Ontem passou o dia todo seguindo aquela moça pela cidade e agora que ela foi embora, está lá embaixo daquela árvore a manhã inteirinha!
É paixonite de guri, passa logo.
O sol quando chegou ao centro das atenções, trouxe de volta; Ela, em um raio dourado no seu vestido branco. Estava ainda lá, olhando em volta em busca de algo para me lembrar dela, mas não havia nada, nada. Só que quando ela surgiu, todas as coisas também surgiram. Os livros balançavam amistosos nos galhos e uma vitrola arranhava nostalgias de Cayme. Tudo em seu lugar: Aonde você foi? Pronunciei estas palavras atropelando a voz, sem acreditar mesmo que as tivesse pronunciado. Como quem pergunta ao melhor amigo ou um parente próximo. Não esperei resposta. Corri de volta para casa e já no portão olhei para trás e a vi sorrir. Corri mais ainda e passei pela cozinha assustando minha mãe: O que é isto Josimar? e continuou a cozinhar.
Desde aquele dia ela sumia todas as noites e só voltava exatamente ao meio dia. Algumas noites ficava acordado até tarde, olhos pregados naquele aposento arboristico esperando o momento exato em que ela desapareceria, mas nunca vira, e ao meio dia lá vinha ela novamente e eu a observava com um pingo de decepção por não descobrir-lhe os segredos. Minha vida era outra desde que ela chegara. Pela manhã estudava na Duque de Caxias, minha escola desde guri e depois voltava correndo pela Colombo até em casa em um único fôlego. Tinha impressão que quando ela surgisse se não estivesse na janela do quarto de mamãe, algo horrível poderia acontecer, como por exemplo, ela ir embora de novo.
Depois que ela surgia se balançava nos galhos lendo e escrevendo, eu almoçava e ficava a postos. Exatamente ás duas da tarde ela sacava a bolsa e seguia rumo ao centro da cidade. Passava a tarde observando as pessoas, lendo no Sebo perto da Igreja e fotografando tudo. Uma tarde distraído observando uma banca de revista, me aproximei. Então ela se virou para mim e tirou um retrato. Parei ressabiado, encarei o concreto gasto da calçada até enxergar as fissuras mais delicadas daí ouvi a voz dela: Eu voltei para casa. Disse. O quê? A pergunta, deixada no vazio ecoou e se perdeu, pois ela já caminhava ao redor de um canteiro da rosas doutro lado da rua.
Estranho ouvir a resposta de uma pergunta feita há dias e para a qual não se espera nenhuma resposta. Mais estranho ainda ouvir sua voz, uma surpresa como gosto e cheiro daqueles suspiros do mercadinho perto de casa. Ela era mesmo A Princesa da Árvore. Neste dia quando voltava para casa no meio dos canteiros e eu na calçada seguinte, perguntei-lhe o nome e ouvi apenas: Que importa? Nomes são feitos apenas para mostrar aos amigos, não servem para mais nada. Calei o resto do caminho.
Caminhamos e quando avistei a Praça não contive um suspiro e pude notar quão triste estava a tarde, o céu, as arvores todas deixaram de chacoalhar na brisa daquela quase noite fria que se aproximava. Pareceu ver uma lágrima correr em seu rosto delicado. Não disse nada, nem eu. Apenas abri o velho portão de ferro, entrei em casa e cai na cama, exausto de tudo.
Nesta noite não fiquei na janela. Deitei e dormi rápida e profundamente. Nenhum sonho, pesadelos ou a boa insônia da minha ansiosa vida de voyeur. Apenas aquela sensação de perda. Amanheci febril, não fui à escola, não comi nem fui à janela. Aqui, já sabia que ela não voltaria.
Aquela poetisa loura foi minha primeira namorada!