Dias de desconserto
 

Dias de desconserto são aqueles que não seguem o padrão, quando o padrão é quebrado por coisas que nos tiram do prumo e o mundo parece que saiu do lugar. É diferente dos dias de encantamento, aqueles que não seguem o padrão, mas nos levam a levitar.

Ontem foi um dia assim, um dia desconcertante. A vida saiu dos trilhos tão logo meu trem saiu da estação.

Não sou de planejar muito o rumo de minha vida, não gosto de tentar o destino e levá-lo a me atraiçoar. Até uma simples viagem não gosto de marcar. Se alguém me convida para viajar no verão e ainda estamos no; outono, posso até aceitar, desde que eu me esqueça dela e só venha a lembrar na hora de fazer a mala. Que é sempre na última hora.

Apesar de não gostar de fazer planejamento para longos prazos, nem mesmo para médios, faço com gosto para curtos. Assim, por exemplo, amanhã. Quando vou me deitar gosto de pensar no que farei amanhã, embora não elabore nenhum roteiro escrito, apenas mental. Quando estou com muito sono, faço isso pela manhã, geralmente na hora em que acordo fora de hora. Que já virou hora certa porque acontece todas as madrugadas. Como agora, em que o sono foi dar uma refrescadinha e eu me levantei para escrever. E pensar no que vou fazer hoje, quando acordar definitivamente para começar o dia. Ou pensar no dia de ontem, que é o que vou fazer agora.

Pois ontem tudo saiu do lugar e eu tive que requebrar para não perder a leveza do meu dia, que é a minha nova mania, graças à leitura que estava fazendo do livro de Leila Ferreira, a Arte de ser leve. Como uma pluma no ar, apesar dos meus tantos quilos. Estava, acabei agorinha mesmo e já vou passar para outro, talvez um dos tantos que comecei e parei. Talvez um novo, que nem sei se vou acabar.

Pois como eu ia dizendo, vamos ao dia que não vou mais recuperar: ontem. Já paramentada para ir fazer meu condicionamento físico, que vai mal das pernas, minha irmã chega a casa e me conta que um amigo nosso morreu – suicidou-se, enforcou-se. Passei o dia todo querendo assimilar a ideia, imaginar o desespero de um ser humano aparentemente forte de espírito que desistiu de viver. Só isso já teria desconsertado todo o meu dia, mas se não bastasse, já eu pronta para segui-lo cambetamente vem ela com nova notícia – a festa que estávamos programando para sábado provavelmente será adiada.

Sábado minha prima iria comemorar o aniversário de seu irmão, um dos meus primos mais queridos, Seria uma festa surpresa, mas ela ligou avisando: ele foi internado, mais uma vez.  Faz anos que luta contra aquela terrível doença, uma daquelas que a gente nem gosta de falar o nome para não atraí-la. Mas ele continua lutando, por isso sua mulher e filhos não quiseram cancelar a festa. Ainda. É comovente o modo como a esperança teima em acender sempre uma pequena luz em nossos corações. Cada vez mais fraquinha, mas ainda acesa.

Esses dois acontecimentos seriam suficientes para desconsertar não só o meu dia, mas um tempo bem maior. O dia foi mesmo atrapalhado. Não consegui fazer o condicionamento físico porque tive que tentar resolver problemas da reforma de minha fábrica de pães. Só tentar, porque não consegui, o que significa que hoje eles estão na minha lista de prioridades. Coisa chata é tentar consertar o que faz anos foi-se atrapalhando. Quem já passou por reformas, sabe disso.  Não consegui almoçar na hora certa, o que sempre me descompensa fisicamente – hipoglicemia, quem já passou por alguma crise sabe bem de que estou falando. Não consegui fazer minha terapia de grupo de duas, porque a outra sumiu e eu não fui procurar. Fiquei tanto tempo correndo de uma fila de banco para outra que não consegui ir me despedir do meu amigo. Mas não me importei  porque ele não estava mais lá. E é por isso que faço isso agora, quando tento fazer chegar até seu espírito conturbado, a energia do meu, entristecido.Mas confiante de que o que não se ajeitou aqui, lá vai se ajeitar.