O livre uso da língua
Dia desses, após um dia estressante e uma aula entediante, no retorno pra casa havia uma cidadão "cantando" e dançando aos berros a seguinte "música": "ai, ai, ui, ui, ui, ai, ai ,ai, ai ,ai, ui, ui (2x)..5 horas da manhã você quer ligar pro boi..."
Não era um adolescente nem nada, era um homem feito já... Fiquei imaginando o que leva um cidadão a gostar de um troço desses, a ponto de sair cantando no meio da rua ("coprofagia!" falou meu esnobe interior), tive vontade de dar uma mochilada no cara.
Depois, mais calmo, pensei que o cara deve ter tido uma infância sofrida, não deve ter tido chance de ouvir muitas músicas e tal.
Perguntei-me também porque outras pessoas submetidas a essas mesmas condições não as aceitam e não se permitem embrutecer os sentidos e a mente a ponto de descer uma ladeira inteira gritando "ai ai ui ui ui, você quer ligar pro boi"...
Bem gente, essa história toda me veio à mente por causa de uma "orientação" recebida, relativa à seguinte frase posta como última linha da introdução a um trabalho sobre motivação: “É preciso, sobretudo, não tolher a motivação natural do indivíduo”.
Fui "orientado" a pôr nota de rodapé explicando o sentido da palavra "tolher", pois a mesa examinadora seria composta por diferentes pessoas... "Professores da faculdade!" quase gritei, acrescentando que me sentiria intelectualmente ofendido com uma nota de rodapé dessa natureza. Não deu jeito, a "orientação" permaneceu inalterada e ainda fui instado a explicar o porquê desse vocábulo insondável...
Rapidamente pensei em uns cinco sinônimos, dedutíveis já pelo sentido da frase, mas, pra debelar meu ego que já estava se achando um gênio da lingüística, peguei o bom e velho Aurélio (versão de papel mesmo, edição de 1988):
Tolher: 1. vtd: embaraçar, estorvar, dificultar; 2. causar paralisia a, paralisar, entorpecer; 3. pôr obstáculo a, opor-se a, embargar; 4. Não deixar manifestar-se, coibir; 5. proibir, impedir; 6. privar; 7. ter paralisia, ficar imóvel.
Para meu desgosto, percebi que não vai ser por lingüística ou gramática que passarei à história. Apenas tive a sorte de nascer na era pré google e de ler bons livros durante a vida. Livros sem nota de rodapé traduzindo palavras do meu próprio idioma, diga-se, e concluí que devo ignorar orientações que visem tolher o livre uso da língua... (sem trocadilho, claro).
Sempre fui, e sou ainda, diametralmente contrário a versões dos clássicos "suavizados" para a leitura de crianças e jovens. O livro deve instigar não só a imaginação, mas também o desejo de aprender da criança/jovem. Sua gana em expandir seus horizontes.
Don Quixote, de Miguel de Cervantes (aclamado em 2002, como o melhor livro de ficção já escrito) é tão extenso e complexo que, no prefácio à 1ª edição, o próprio autor chama o leitor de desocupado. Ainda assim, consta que Freud aprendeu espanhol só para ler Don Quixote no original. Ele teve essa atitude porque era gênio ou forjou-se gênio cultivando atitudes semelhantes?
Acho que as duas coisas, entretanto, se ser gênio é para poucos, a fome e a busca pelo conhecimento é para todos e não atiçamos essa fome com livros castrados ou notas de rodapé.
Se a criança não tem maturidade intelectual para ler Dostoievski, deve ler as fábulas dos irmãos Grimm ou Monteiro Lobato, porque se ela ler a versão infantil de “Crime e Castigo” dificilmente lerá a versão completa e ainda corre risco, por conhecer a história, de tornar-se um esnobe que usa nome de escritor russo pra tirar onda em mesa de bar.
No livro "Em que crêem os que não crêem?" em resposta ao Cardeal Martini que o havia instado a não aprofundar demais o debate para facilitar a vida do leitor, Umberto Eco escreveu:
“Não se preocupe se alguns dizem que falamos difícil: eles poderiam ter sido encorajados a pensar fácil demais pela ‘revelação’ da mídia, previsível por definição. Que aprendam a pensar difícil, pois nem o mistério, nem a evidência são fáceis”.
Como diria Meu avô Jibóia: "Apois é"...
Outro livro, tão comentado quanto não lido, de Umberto Eco é “O Nome da Rosa”, que tem inúmeros trechos transcritos em latim. Sem nenhuma nota... Opção do autor para colocar seus leitores em contato com a língua mãe dos idiomas latinos. Questão de coerência com o “pensar difícil”.
Tenho ouvido e lido muita coisa falando dos benefícios dos exercícios físicos para o corpo, mas não lembro de ninguém propondo exercícios para a cabeça das pessoas, uma espécie de "Neuróbica". Livros que estimulassem as crianças a usarem o dicionário por exemplo. Para que não chegassem à Academia precisando que notas de rodapé traduzissem seu próprio idioma...
E o cara do ai, ai, ui, ui, ui? Sei lá rapaz... Depois de tudo isso acho que o coitado não tem culpa nenhuma e a mochilada seria injusta. É uma "vítima do sistema" como se diz (nesse caso, do sistema educacional).
Ou então é adepto desses mantras das doutrinas orientais que dizem que não pensar em nada enquanto se canta algo sem sentido também é "Neuróbica"...