Ela já não se lembra de mim
Eu estava na Livraria de minha amiga Beth, lutando com os arremates de sua mudança de ponto, quando ela passou. Meu coração doeu, ao vê-la tão magrinha, tão dependente, só saindo na rua acompanhada. Pouco depois eu busquei meu rumo e nessa busca encontrei outra comerciante da rua, a Santana, que me alertou: soube que ela não sai mais sozinha, mas parece-me que a vi sozinha dentro de uma loja, mais embaixo. Garanti-lhe que ela não estava só, mesmo assim fui me certificar. Logo depois a encontrei e nos cumprimentamos como se nada houvesse acontecido. Ela com seu sorriso largo e franco veio até a porta se encontrar comigo e conversamos um tempinho. Falamos principalmente sobre o fato dela não mais trabalhar, não precisava mais, os filhos estavam todos criados e encaminhados. Eu os elogiei, principalmente o rapaz, gosto um bocado deles como se fossem meus sobrinhos. Daí me despedi e continuei descendo a rua. Poucos passos. Sua acompanhante veio atrás de mim queria saber meu nome porque ela não se lembrava. Identifiquei-me e no mesmo momento ela se aproximou. A acompanhante disse:- É a Maria Olímpia. Foi então que meus olhos ficaram enevoados, quando ela disse: Desculpe, Maria Olímpia, eu não tinha visto você. Estava ali em cima conversando com uma moça que eu nem sei quem é e ela estava elogiando meus filhos.
Sua família mudou-se para Lavras praticamente ao mesmo tempo em que a minha. Eu a conheço desde então. Quase uma menina já trabalhava para ajudar sua família. Logo depois a mãe morreu, ela se casou, os filhos nasceram, de empregada passou a ter seu próprio negócio, bem em frente ao nosso. E assim nossas vidas continuaram paralelas, mas sempre se cruzando e a amizade se solidificando. De repente parece que ela se cansou. Ninguém atinava com o que acontecia, estresse, depressão, coisas passageiras que não passaram. Não passaram porque não eram passageiras. Veio para ficar e fazê-la regredir para um mundo desconhecido para todos e até para si própria.
Alguns males que assolam o mundo se tornam sem nome. Houve uma época que certa doença não tinha nome. Quem o câncer consumia não dizia seu nome. Era aquela doença, estigma de morte com prazo definido. Depois veio outra que também não era nominada. Ainda não é, totalmente. É muito difícil alguém dizer que tem AIDS. Mas para mim, essa é a pior. Eu nem sei escrever seu nome e nem faço questão de aprender. Para mim é a mais devastadora. Não tenho medo de doença nenhuma, mas dessa eu tenho. Vi muitas pessoas serem destruídas por ela e vi o sofrimento daqueles que os amavam. Alguns a chamam de doença do Alemão e ainda brincam: o Alemão pegou fulana, ou beltrana. Deve ser horrível ter a vida destruída pelo esquecimento. Não se lembrar das pessoas e das coisas que aconteceram em sua vida. Desconhecer a própria família, os amigos. Morrer antes de a morte chegar. Ficar esperando, estática, o momento final da libertação do espírito aprisionado nas brumas do esquecimento.
Eu estava na Livraria de minha amiga Beth, lutando com os arremates de sua mudança de ponto, quando ela passou. Meu coração doeu, ao vê-la tão magrinha, tão dependente, só saindo na rua acompanhada. Pouco depois eu busquei meu rumo e nessa busca encontrei outra comerciante da rua, a Santana, que me alertou: soube que ela não sai mais sozinha, mas parece-me que a vi sozinha dentro de uma loja, mais embaixo. Garanti-lhe que ela não estava só, mesmo assim fui me certificar. Logo depois a encontrei e nos cumprimentamos como se nada houvesse acontecido. Ela com seu sorriso largo e franco veio até a porta se encontrar comigo e conversamos um tempinho. Falamos principalmente sobre o fato dela não mais trabalhar, não precisava mais, os filhos estavam todos criados e encaminhados. Eu os elogiei, principalmente o rapaz, gosto um bocado deles como se fossem meus sobrinhos. Daí me despedi e continuei descendo a rua. Poucos passos. Sua acompanhante veio atrás de mim queria saber meu nome porque ela não se lembrava. Identifiquei-me e no mesmo momento ela se aproximou. A acompanhante disse:- É a Maria Olímpia. Foi então que meus olhos ficaram enevoados, quando ela disse: Desculpe, Maria Olímpia, eu não tinha visto você. Estava ali em cima conversando com uma moça que eu nem sei quem é e ela estava elogiando meus filhos.
Sua família mudou-se para Lavras praticamente ao mesmo tempo em que a minha. Eu a conheço desde então. Quase uma menina já trabalhava para ajudar sua família. Logo depois a mãe morreu, ela se casou, os filhos nasceram, de empregada passou a ter seu próprio negócio, bem em frente ao nosso. E assim nossas vidas continuaram paralelas, mas sempre se cruzando e a amizade se solidificando. De repente parece que ela se cansou. Ninguém atinava com o que acontecia, estresse, depressão, coisas passageiras que não passaram. Não passaram porque não eram passageiras. Veio para ficar e fazê-la regredir para um mundo desconhecido para todos e até para si própria.
Alguns males que assolam o mundo se tornam sem nome. Houve uma época que certa doença não tinha nome. Quem o câncer consumia não dizia seu nome. Era aquela doença, estigma de morte com prazo definido. Depois veio outra que também não era nominada. Ainda não é, totalmente. É muito difícil alguém dizer que tem AIDS. Mas para mim, essa é a pior. Eu nem sei escrever seu nome e nem faço questão de aprender. Para mim é a mais devastadora. Não tenho medo de doença nenhuma, mas dessa eu tenho. Vi muitas pessoas serem destruídas por ela e vi o sofrimento daqueles que os amavam. Alguns a chamam de doença do Alemão e ainda brincam: o Alemão pegou fulana, ou beltrana. Deve ser horrível ter a vida destruída pelo esquecimento. Não se lembrar das pessoas e das coisas que aconteceram em sua vida. Desconhecer a própria família, os amigos. Morrer antes de a morte chegar. Ficar esperando, estática, o momento final da libertação do espírito aprisionado nas brumas do esquecimento.