Eu quase não me lembro dela
 
Só as lembranças nos unem e mesmo assim estão cada vez mais dispersas. O cenário maior é sempre o mesmo, mas o tempo se confunde. Nem dá para visualizar o seu semblante, a roupa que veste. Está tudo apagado, nebuloso, como uma fotografia antiga.

Há a lembrança dela, no colo da mãe. Estica os braços em direção aos braços do pai. Não consegue alcançá-los, a mãe a impede. Ela chora, sempre foi chorona, chorou tanto que desaprendeu. Hoje, só livros e filmes a levam ao pranto. Sempre oculto, desperdiçou todas as lágrimas em tempos remotos e agora só lágrimas furtivas escorrem por sua face.

Lembra-se dela bem grande, magrela e ossuda. Se tivesse continuado a crescer na velocidade em que cresceu nos primeiros anos, hoje seria bem maior do que sou. Ainda bem que a natureza a protegeu, cresceu praticamente até os onze anos e depois parou. Lembro – me que tinha horror de suas roupas curtas, lembro-me de um vestido amarelo com bolinhas marrons, lembro-me que tirou um retrato sentada na calçada da casa da avó junto com dois irmãos, mas não me lembro de quais. Lembro-me também que tinha sido seu aniversário e que a tia madrinha lhe dera de presente uma lata de goiabada. Ou seria de marmelada?

Lembro-me da noite que antecedeu seu primeiro dia de aula, a pressa para que amanhecesse e pudesse ir para a escola pela primeira vez. Mas já sabia ler porque lembro também dela sendo puxada pelo pai e lendo nos muros das casas tudo que estivesse escrito, para honra e gaudio dele. Lembro-me dela na escola assentada ao lado de um menino grande, um velho, ela pensava, o nariz escorrendo, o que lhe dava nojo e ela se sentava bem longe dele, o mais longe possível, quase na pontinha, quase caindo, quase de costas para ele. E me lembro de também que era a única que, quando fazia frio ou a escola era lavada, podia por os pés no apoio da carteira de frente, porque tinha dor nas pernas. Lembro-me dela lendo gibis em tempos que não era ainda tempo de saber ler, no quarto que além de quarto era depósito, junto ao tio mais novo, mais irmão do que tio, amigo de infância. Lembro-me das emoções que sentia esperando as férias chegarem e com elas os primos da cidade grande, cheios de novidades. E também recuperei as lembranças de suas viagens, duas em especial, a primeira quando tinha cinco anos e foram a Aparecida do Norte batizar a irmã e dessa viagem com pai, mãe, irmãos, padrinhos e madrinhas só me lembro do vestido de festa, vermelho de bolinhas brancas e da bolsa rosa e branca que não pôde comprar porque não combinava com o vestido e lembro ainda do choro desesperado tão grande que ficou de olhos inchados e talvez seja aí o ponto x da sua vida quando aprendeu que não valia a pena lutar pelo que desejava, que não adiantava chorar. A outra viagem nem foi tão dramática, foi em companhia da avó para fazer Primeira Comunhão, nessa cidade que hoje é a minha e onde coisas aconteceram que eu nunca esqueci, ela descendo pela rua, com roupa branca e véu na cabeça e na janela a moça gorda gritando alto e bom som: olha a noiva, olha a noiva!  E ela caminhando para a Comunhão certa que comungaria em pecado porque virou para trás e mostrando a língua para a menina gorda, falou de forma que ela ouvisse, mas não quem a acompanhava: Sapa!  E também vejo em minha memória ela indo ao cinema pela primeira vez em um cinema que eu sei que era importante, mas ela nunca soube e mesmo se soubesse não faria a menor diferença porque ser uma réplica do Scala de Milão não era coisa que lhe interessasse. Ah, mas como essa viagem foi marcante, talvez a única vez que sentiu uma fome verdadeira em sua vida, quando percebeu que a avó esquecera os sanduíches de pão com sardinha na casa da tia. E é incrível como essa lembrança da vida dela, até hoje quando penso que estou com fome sinto vontade de comer pão com sardinha.
Coisas me entristecem quando penso nela e como a sua vida cada vez mais é para mim um borrão indistinto, passando por mim correndo, como ela corria pelas ruas o tempo todo, como se fosse tirar o pai da forca ou se preparando para uma maratona. Sinto tristeza também porque compreendo que o que sou nunca esteve nem nos sonhos nem nos planos dela. Que nunca ela pensou na pessoa que sou como sendo um projeto a ser desenvolvido. Que ela e eu estamos tão distantes uma da outra que ninguém acreditaria caso eu dissesse, que somos a mesma pessoa.