TAÇA DE VIDRO

Ela é a única que restara do jogo de taças de sobremesas. O vidro já embaçado ainda reluz numa réstia de brilho no velho armário. Parece possuir a etiqueta das coisas não eternas, apesar de ainda resistir ao desequilíbrio de mãos apressadas. Ou distraídas. Ou a falta de cuidado que a natureza negou à mulher. Não estou sendo radical demais? Afinal é apenas um vidro e suas companheiras estilhaçaram-se ao longo de dezesseis anos. Mas é certo que as queriam eternas. Afinal era presente de casamento e já nem se lembrava mais quem as teriam dado como presente. Alguns nomes e datas são tão difíceis de guardar na memória. Bastam as de aniversário de pais, irmãos, afilhados, sobrinhos e do esposo, além da própria data de casamento. Estas datas não se deve jamais esquecer. É questão de honra lembrá-las todos os anos. Mas presentes se lembravam de poucos. Mas lembrava bem que o jogo de taças ganhara no dia 16 de junho de 1990, dia de seu casamento.

Agora enquanto limpava o vidro do armário pousara os olhos na velha taça. Nem sabia ao certo porque motivo suas retinas a escolheram entre todas as louças ali espalhadas. Talvez porque a tivesse enxergado solitária entre as outras quatro taças verdes que ganhara do marido nem se lembrava mais qual Natal. Todas tinham a sua história. Mas viajara na história da solitária taça de vidro. Rebobinou o tempo. Foi então que se deu conta de quanto tempo se passara desde seu casamento. A linha da eternidade foi curta paras as outras cinco taças que se quebraram ao longo dos anos. Uma após outra elas se foram em cacos transparentes. Sentiu uma dor no peito ao lembrá-las.

Sempre fora desastrada na cozinha e agora vê a solidão da única taça que sobrara. Entretanto ainda lhe é bastante útil. A última vez que se servira dela, a enchera de gelatina de Kiwi. Nem faz tanto tempo assim. Quanto contraste e quanto sabor! Mas não faz muitos doces ou sobremesas. O marido tem problemas de glicose alta e para piorar a situação ele adora todas essas guloseimas.

Com água na boca se lembrou do mouse de pêssego com pedaços da fruta e a de maracujá com calda. Esquecia-se daquele mouse de uva também com calda do próprio suco. Quantos sabores e quantas delícias! Entretanto já nem se lembra se da última vez fora o marido que se deliciara com a gelatina de Kiwi na taça branca ou se foi ela mesma. Fazia as sobremesas para ele de vez em quando, apesar das restrições de dieta. Afinal ninguém é de ferro.

Nesta sua viagem sorriu das doces lembranças... E que doces! Sentiu a língua úmida. Por um momento pensou que a saudade é úmida e doce. Mas saudade também verte lágrimas salgadas. Entretanto queria que fossem sempre doces quais as sobremesas da taça branca. Mas não, elas às vezes eram salgadas.

Por instantes tocou a pequena taça enigmática. Ela tinha olhos era quase certo. Olhos transparentes que guardavam os sabores que as retinas não podem ver nem sentir. Foi então que lágrimas correram dos seus olhos. Não chorava a falta das cinco taças. Talvez chorasse a solidão da taça que restara. Mas descobriu que chorava suas próprias ausências nesses instantes de saudades. A taça era apenas uma desculpa agora que descobrira que a saudade além de úmida, tinha paladar. Ela estava ali à sua frente. Entretanto havia uma sensação de saudade. Talvez fosse saudade do conteúdo que tantas vezes lhe enchera o pequeno corpo transparente. Ou das coisas que se vão... Ou talvez pelo destino de todas as coisas: o fim. Nada é eterno. Só a alma.

Por um instante reconhecera tudo isso naquele espaço de vidas quietas. Tantas lembranças! Sim. Lembranças e mais lembranças escondidas no duo verde dos potinhos que ganhara da afilhada querida; as taças de sorvete que ganhara da madrinha de crisma; as quatro taças que ganhara do marido no Natal; a bandeja de vidro que ganhara de amigo oculto ao final de novenas de Natal...

Por que será que estava sempre se lembrando de alguma coisa ou voltando ao passado? E mal se chegava lá vinham as lágrimas úmidas e salgadas. Às vezes doces. São tantas coisas que se guardam. Coisas que fazem nossa história. Datas, algum sorriso, muitas lágrimas, uma sobremesa colorida, uma única taça...

Que estranha forma de viver é essa? Será que ela pertencia às lembranças ou elas lhes pertenciam? Às vezes pensava que tinha os pés no passado e jamais saíra dele, embora o presente teimasse em chamá-la. A que mundo pertencia afinal? Às lembranças de outrora ou ao presente que às vezes machuca? Não são as lembranças que machucam? Entretanto sabia que estava ali com pano úmido na mão a limpar o armário e absorvendo a lembrança de cada objeto que tocava. Precisava, no entanto voltar à realidade e terminar o trabalho. Afinal o sábado já se ia pela metade. Apesar de todas as histórias, o passado já não existia mais, apenas as lembranças. Entre elas as taças brancas de sobremesa que se quebraram ao longo dos anos, restando do jogo, apenas a solitária taça de vidro.

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 15/12/2006
Reeditado em 12/12/2008
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