Cecília

Durante boa parte da minha vida, não conheci mulher mais carinhosa e amorosa do que a Cecília. E vocês concordarão comigo, até o final deste texto.

Cecília nasceu na Bolívia, familia pobre, paupérrima. Sua mãe era alcoólatra, seu pai a havia abandonado há tempos e ela quase nem se lembrava dele. Alguns irmãos, pouco contato.

Mas a Cecília era afilhada da minha avó Helena, mãe da minha mãe. E para a casa da minha avó, mudou-se quando tinha dezessete anos de idade, pois não tinha mais ninguém na vida.

Minha avó era professora de Artes Culinárias no SESI e, nos intervalos entre suas aulas rigorosíssimas, ela produzia para esta cidade as comidas mais deliciosas que esta cidade já provou algum dia. Desta forma, a Cecília a ajudava nos afazeres de casa, nas encomendas particulares e lá vivia e morava, com meus avós.

E vieram os filhos dos meus avós, Giordano e Vera, esta última, minha mãe. E a Cecília ajudou os meus avós a criá-los.

E minha mãe tornou-se adulta, casou-se e teve filhos. E a Cecília ajudou-a me criar. Nascido em 1973, fui criado pelos meus avós maternos até a minha adolescência.

Como já explicado em textos anteriores, eu fui considerado possuidor de uma inteligência acima da média e resolveram que eu ficaria na cidade de Corumbá, com meus avós, enquanto meus pais se embrenhavam nos cafundós onde Judas perdeu as meias, com o meu pai sendo transferido o tempo todo pelo Banco do Brasil. E fui criado então, pelos meus avós e pela Cecília.

A Cecília era cúmplice da minha avó, ao não medir esforços na arte de se empenhar para me fazer feliz.

Ela me levava religiosamente todos os fins de semana no Jardim da Independência, para as brincadeiras clássicas, tais como escorregar e balançar, tendo a sinfonia metálica das correntes enferrujadas como trilha sonora para aqueles entardeceres. Eu me divertia muito com meu tênis inundado de areia suja, camiseta suada de tanto brincar de pegador com as outras crianças e, principalmente, ao comer a pipoca mais gostosa que já comi na vida - já que as pipocas de pipoqueiros nunca são iguais às que comemos em casa. Ela geralmente ficava sentada, abanando seu lenço de tecido, tentando afastar o calor de si e com os olhos atentos às minhas peraltices, molecagens e traquinagens.

A menor caída, a mais leve ralada no joellho, lá estava ela aflita querendo ver a gravidade da situação e, dependendo da situação, nosso passeio terminava ali mesmo - com ela me dando o esporro dos esporros pelo susto causado - mas no instante seguinte, lá estavam meus cabelos loiros e lisos sendo afagados pelas mãos mais fofas e calorosas que me acariciaram.

Ela fazia todos os meus gostos. Quase sempre me levava à banca de revistas do Natércio, na Frei Mariano, onde eu torrava toda a minha mesada com os gibis que eu tanto adorava e não raro, ela gastava seu próprio dinheiro para complementar a minha compra semanal, ao perceber que meus olhos ainda queriam mais - afinal, ela foi, de certa forma, a minha alfabetizadora, antes mesmo de ir para a escola, com cerca de quatro anos de idade.

Era assim: vendo o meu interesse pelas histórias em quadrinhos, a Cecília lia gibis INTEIROS, em voz alta, para mim. Eu ficava sentado no colo dela, ela passeando seus dedos cansados pelas letras e eu acompanhando os sons e os relacionando com as palavras. Logo eu percebi que esta associação de sons e imagens fazia sentido e passei a ler os textos sem precisar mais do seu auxílio - porém - aquele era um dos nossos momentos de comunhão e eu me sentia importantíssimo e não perderia aquilo por nada desse mundo.

E isso porque a Cecília nunca tinha frequentado uma escola. Ou melhor, tinha.

Ela nos contava que quando sua mãe a abandonou em um colégio de freiras na nossa cidade, ela era obrigada a ajudar na cozinha e a lavar as roupas das outras meninas do internato. O cansaço do trabalho noturno a impedia de ter o aproveitamento necessário no dia seguinte. E ela passava boa parte das aulas entre o mundo da realidade incompreensível e do sono - e isso também lhe custava muitas ajoelhadas ao milho e outras humilhações comuns à época, naquela casa de mulheres de Deus.

Certa vez, ainda neste colégio, ela encontrou alguns filhotinhos de rato e, inocentemente, os acolheu dentro de uma caixa de fósforos. Eram seus parceiros de rejeição- pois , como ela - ninguém os queria. Porém, uma freira descobriu os bichinhos de estimação na gaveta da Cecília e , impediosamente os esmagou debaixo das pesadas botas cristãs, na sua frente. Foram semanas para cicatrizar as marcas dos hematomas deixados pela palmatória de madeira de lei, por causa da sua ingenuidade.

A vida dela no internato terminou no dia em que ela pegou uma "Irmã" superior entregue aos desejos da luxúria com uma jovem interna - e filha de gente abastada da cidade - ao adentrar sem bater na sua sala. Game Over. Ela não poderia mais ficar ali, sabia demais.

Eu me revoltava e até mesmo chorava quando ela nos contava essas histórias. Não passava pela minha cabeça como alguém poderia machucar aquela mulher bondosa e cheia de amor para compartilhar?

Mas por vezes ela nos contava histórias misteriosas e fascinantes. E geralmente essas histórias eram contadas à luz de vela, pois se HOJE, em Corumbá, o fornecimento de energia elétrica ainda é uma merda, imagine nos idos dos anos 70. Assim, quando a luz acabava sem razão alguma ou ao começar a chover (pois em Corumbá as linhas de energia ainda são feitas de açúcar e derretem-se ao menor sinal de água celeste), ela e minha avó demonstravam a arte de contar histórias "do seu tempo" e meu avô só ficava ali no escuro, mudo e ouvinte e, vez ou outra, seu rosto iluminava-se periodicamente, como um farol, ao tragar longamente o seu cigarro.

Uma das histórias que ela contava e que mais me impressionava era a de um "espirito do mato", na Bolívia, que ela jurou que tinha presenciado quando criança. Um assovio humano era ouvido lá ao longe. Quanto mais você prestasse atenção no assovio, mais próximo ele ia se chegando, até o assovio ser desferido ali, do seu lado e você sem ver nada. Porém, se você se concentrasse em outras coisas e ignorasse o assovio deste espírito, ele iria torrar o saco de outro e ia embora.

E contava sobre rios que apareciam e sumiam. E sobre homens magros e amarelos que se tornavam lobisomens. E sobre causos da Guerra do Paraguai que os antigos contavam de geração em geração.

E eu me fascinava com tudo aquilo. Eu visualizava cena por cena que era narrada naqueles momentos de escuridão e silêncio quase absoluto. O bruxulear das velas dava ainda mais dramaticidade às histórias detalhadas, pacientemente.

Nos dias corumbaenses mais quentes, quando o asfalto derretia-se em calda, ela forrava alguns lençóis no chão fresco e fazíamos a siesta do almoço ali, deitados no chão da sala de estar da minha avó, com um velho e barulhento ventilador de metal a soprar o bafo quente do verão.

Foi num momento desses - em um Domingo - que ela me disse que eu iria para a escola pela primeira vez. Eu tinha quatro anos.

- Amanhã você vai para a escola.

- E o que é escola? - respondi.

- É um lugar onde você vai fazer muitos amigos e estudar para ser gente, ser alguém, aprender coisas.

Não entendi porra nenhuma, mas no dia seguinte lá estava ela me levando para a escola, junto com a minha avó, sombrinha elevada para me proteger do sol.

E por muitas vezes ela me pegou e me levou para a escola. Muitas. Quando não era ela, era a minha avó Helena, as duas sempre se alternando no ofício de proteger o filho dos outros.

Nos meus aniversários, a Cecília fazia questão que EU escolhesse o meu presente. Ela, uma mestra na sapiência da vida, sabia da minha frustração ao receber e abrir embrulhos com roupas ( afinal, que criança gosta de receber roupas como presente? ) e queria TER CERTEZA de que o SEU presente seria querido e desejado por mim. Geralmente, nesse dia, nosso destino era a Casa Palmira, o território sagrado dos brinquedos na época - na nossa cidade - o sonho de consumo de qualquer criança sã da região.

Fui crescendo, tendo outros afazeres, interesses e prioridades. Mas ainda adorava assistir filmes com a Cecília, em especial os filmes de terror, quando nas cenas mais horripilantes ela colocava as mãos no rosto, querendo e não querendo ver tudo aquilo. E eu morria de dar gargalhadas com esta cena. Era a minha desforra pelas histórias que ela me contava quando era criança e que custaram muitas noites de olhos esbugalhados, atentos a qualquer sombra projetada pelas árvores do vizinho nas paredes do meu quarto.

E com a adolescência, fui deixando o convívio com meus avós e com a Cecília.

Quando meu filho nasceu, ela estava lá me dando conselhos, admirando aquele grande bebê de quatro quilos e meio. E chorou muito, quando ele partiu com a mãe dele, para Campo Grande.

E chorou mais ainda, quando minha avó faleceu dolorosamente, com câncer, quando eu tinha cerca de dezoito anos de idade. Ela, porém, continuou inabalável, firme no posto de fiel guardiã da nossa família, cuidando do meu avô, da minha mãe recem-separada do meu pai e da minha irmã.

Quando minha irmã casou e teve a sua filha, Ana Paula, ela incumbiu-se mais uma vez do árduo e cansativo ofício de ser babá. Não foi uma imposição. Era um desejo dela, de servir, de participar, de compartilhar.

Meu avô já tinha falecido quando isso ocorreu e, apesar da insistência do seu irmão e dos seus sobrinhos de sangue para que ela fosse enfim, morar com eles, ela simplesmente recusou. Ali era sua casa. Ali era sua família.

E muitos anos depois, quase dezenove anos depois do nascimento do meu filho mais velho, veio a minha filha, Isabelle, em 14 de Dezembro de 2008. E ela a conheceu e se encantou com ela. Porém, a saúde já não era mais a mesma. Aquela mulher forte e inabalável já havia se esvaido há anos. O seu grande coração estava grande demais, o sangue já não circulava direito pelo seu corpo cansado. Os seus pulmões já não tinham forças para sugar a vida.

Ela finalmente descansou aos oitenta e dois anos, na triste noite de 04 de Dezembro de 2009. Não casou, não teve filhos - mas nunca precisou sentir as dores do parto para ser mãe, pois sua cria espiritual foi imensa.

Apesar de ser chamada carinhosamente de "Tia Cecília", ela não era tia.

Ela era mãe, ela era avó, ela era bisavó.

E, por ser parte de nós - da nossa vida - foi sepultada no jazigo da nossa família, ao lado dos meus avós. Era o desejo da minha avó Helena. Era o nosso desejo.

Tia Cecília se foi. Foi uma perda irreparável. Porém, antes de nos deixar, ela ainda nos brindou com mais um dos seus inestimáveis gestos de carinho e generosidade. Doente e acamada no CTI, ela deixou o dinheiro necessario e claras instruções à minha irmã, Renata, para comprar o presente de aniversário da minha filha - um colorido triciclo de plástico.

Tal como um dia ela o havia feito, para mim.

E eu gostaria de descrever para vocês o quanto meus olhos ainda enchem de água, ao ver a minha linda Isabelle, se divertindo no parquinho ao pedalar seu brinquedo favorito, feliz como as crianças devem ser.

Obrigado, pelo seu amor incondicional, Tia Cecília.

Muito obrigado.

Fábio Marchi
Enviado por Fábio Marchi em 22/08/2011
Código do texto: T3174895
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