Nuvens

Tinha uma brincadeira que eu adorava fazer quando criança: deitava-me no quintal da casa dos meus avós - à sombra - sobre uma toalha estendida ao chão e lá ficava observando o céu, nas ensolaradas tardes corumbaenses.

Mas não poderia ser uma tarde qualquer - apenas quando o céu estivesse com nuvens em abundância. Quanto maior a variação das formas e tonalidades de branco, azul e cinza - melhor.

E assim, eu me perdia no tempo, tentando imaginar os desenhos e as figuras que as nuvens pincelavam naquele céu anil. As vezes, tinha a nitida sensação que estas imagens se exibiam de forma proposital para mim, apenas para o meu deleite - dragões, cavalos, caminhões, trens, rostos, anjos, demônios, gatos, paisagens completas.

As vezes, quando o céu estava muito carregado de nuvens de chuva e um ou outro raio de sol furava este colchão enevoado, produzia um interessante efeito de luz e sentia-me como se Deus estivesse ali, abençoando aquele local onde vivia, deslumbrado com aquela obra de arte natural.

Este exercício mental foi crucial para que eu desenvolvesse a minha criatividade artística, pois desenhar, sempre desenhei. Os desenhos mais remotos que eu me lembro de ter feito foram quando eu estudava no Santa Inês, na segunda série - e cobrava moedas para desenhar personagens simples das histórias em quadrinhos, como Popeye ou o Bidu com os nomes dos coleguinhas-clientes da minha sala.

Um pouco mais tarde, aproveitaram meu talento natural nas aulas de pintura com a irmã do artista plástico Burgos, em um atelier ali na Treze de Junho, a cerca de uma quadra de casa. Nestas aulas, meus materiais de pintura eram a tinta gouache, o pincel e o papel.

Porém, eu não ficava na tediosa tarefa de preencher com tinta os desenhos que a Dona Burgos rabiscava nos meus cadernos. Eu usava a imaginação desenvolvida nos meus exercícios vespertinos para construir detalhes extras nos cenários, caprichar nos degradês e procurar usar as melhores nuances possíveis para construir a obra.

Certa vez, na sexta série do Santa Teresa, nossa classe resolveu fazer uma camiseta da turma e então fomos até a serigrafia do Malah, a pessoa que mais influenciou a minha carreira, até hoje. Ao chegar no seu estúdio, vi aquele caos de folhas de papel vegetal, esboços, tintas, camisetas por todo canto, toneladas de adesivos sendo impressos manualmente e muito cheiro de solvente no ar.

Eu fiquei deslumbrado com tudo aquilo ali e inocentemente perguntei para ele como eles faziam aquilo, a tinta passando por aquela fina tela e formando aqueles desenhos coloridíssimos nos tecidos. Ele riu e me respondeu:

- Menino, é o meu ganha-pão. Você acha que a gente entrega o segredo do nosso ganha- pão para alguém?

Eu fiquei sem-graça. Então meus amigos, que me acompanharam para acertar o preço, apressaram-se para finalizar a negociação e nunca mais voltei ali. Porém, esse cenário de arte e caos foi o suficiente para marcar-me profundamente.

E assim, o desenho figurou - até a minha tenra adolescência - como diversão, apenas um hobby diferenciado que me garantia algumas gargalhadas dos amigos nas salas de aula ao fazer caricaturas de professores e colegas ou ainda para impressionar alguma garota que estivesse a fim.

Então, com 16 anos, tive a notícia que seria pai. Na época, estudava no CIEC, uma escola bacana, puxada, rígida e cara.

Meu pai, ao saber da anunciação, chegou para mim e disse:

- Bem, creio que se você é homem para fazer filho, você também é homem para sustentá-lo. Se vira, negão!

E com estas palavras - a versão anos 90 do "chupa-essa-manga"- , me tirou da escola e fez com que minha mãe me matriculasse na metade do segundo ano do segundo grau no noturno do Maria Leite, uma escola estadual que já teve seus momentos de glória e reputação ilibada nos anos 60 e 70 - porém, na minha vez, encontrava-se em franco processo de decadência. Eu fiquei muito chateado com essa situação e saí de casa. Já passava a maioria das noites na casa da Gisele mesmo, então, foda-se.

Assim, em uma só tacada ( e com desculpas pelo trocadilho infame que a palavra sugere ) eu mudei de escola, de período, assumi uma familia e arrumei um emprego.

Opa, opa, opa! Emprego? Rá, e me diz quem é que aceitava um adolescente magrelo que ainda nem tinha servido o serviço militar obrigatório, para trabalhar? Ninguém. Não existia programa de aprendizado. Estágio remunerado era só para a turma da universidade e eu ainda estava no segundo grau.

Por sorte, consegui um emprego de vendedor em uma loja de roupas e calçados. Contei minha história para o gerente e ele se sensibilizou com a minha situação, completamente fodida, de cu e cabeça. Porém, foi enfático:

- Não contrato menores de idade. Na primeira pisada de bola, rua.

No dia seguinte, recebi um kit de calça social, camisa e gravata - o uniforme de vendas da loja e que seria descontado do meu próximo salário. E fui descobrindo as dores de trabalhar de pé durante mais de oito horas diárias, muitas delas sem intervalo. E como o mais novo vendedor da loja, não tinha nenhuma vantagem: limpava as seções sozinho e arrumava tudo ao final do expediente. Terminava meu turno e lá eu ia - de bicicleta - a toda velocidade para casa, tentar engolir algo e ir para a escola.

Eu me lembro que fiquei côro-e-osso neste período. Comia mal, dormia mal. Um cansaço só. Mas as vezes, eu me divertia com algumas mulheres que se insinuavam e por puro exibicionismo, mostravam seus corpos quase nus nos provadores da loja ou, prazerosamente roçavam seus pés nas minhas mãos, ao provar algum sapato. E isso de certa forma, era uma gostosa quebra-rotina. Helllooooou? Eu ainda era um adolescente, ok?

Eu cursava o terceiro ano, quando meu filho André, nasceu. Aquilo sim, foi barra: ser pai pela primeira vez, novíssimo E estudar. Para piorar, era a primeira vez que tinha estudado em uma escola pública na minha vida e isso não se comparava em nada ao que tinha vivenciado até então. Fraca demais. Tinha que economizar entre o leite e as fraldas para comprar livros adicionais e assim, incrementar as matérias fornecidas, tão fracas quanto a vontade dos meus professores em ensinar - e rezar para aquela porcaria não entrar em greve, tão comum naquela época.

Porém, aconteceu algo que mudou todo o rumo da minha vida.

Passados alguns meses após meu ingresso no quadro de funcionários da loja, entrou uma garota, uma funcionária nova. Essa garota era casada com um amigo meu. Até aí, nenhum problema, salvo o fato que ela tinha certos privilégios com o recém-chegado subgerente da loja, irmão do DONO. Os tais privilégios eram coisas simples, como sair mais cedo ou nem mesmo ajudar a organizar a mercadoria que ela vendia exclusivamente na sua seção. Ah, que se dane, é mulher. E as mulheres tem sempre as suas vantagens - pensava eu, chauvinisticamente.

Um dia estava eu fazendo um lanche na Galeria Pantanal. Eu não tinha ido para casa almoçar, pois era uma época promocional de vendas, alguma data comemorativa onde cada centavo da generosa comissão de três por cento fazia a diferença, quando eu a vi, saindo do prédio onde morava o subgerente, toda apressada, ajeitando os cabelos úmidos - e desajeitadamente, ela me viu, fez que não viu e tomou seu rumo à loja. Não tinha se passado um minuto e seu provável amante seguiu o mesmo roteiro.

Eu fiquei na minha, apesar de muito surpreso com a situação. Porém, não tinha nada a ver com isso, que se danasse o corno. Sabia como funcionava essa coisas. No fim das contas, o guampudo aceitaria a traição e quem saía como o filhadaputa na história, o fofoqueiro, a fifi do capeta, era eu. Deixa quieto, que você ganha mais - pensei.

Mas acho que eles não pensavam assim. Tinha me tornado a partir daí, um fardo insustentável em sua rotina. E ali conheci o que é o tal do assédio moral, tão em voga nos dias de hoje. Qualquer erro, descuido ou falha, eu era punido com advertências, humilhações, desconto em salário. Estava bem claro o que queriam: que eu me demitisse.

Isso eu não faria nunca. Precisava do emprego, ainda que fosse a merda das merdas.

Então armaram uma arapuca.

Em um dia movimentado, o subgerente me deslocou para o setor de moda feminina (nesta época eu trabalhava no setor de moda masculina), apuradíssimo com a venda de sapatos. Porém, não era qualquer vendedor que poderia entrar no depósito para coletar modelos e numerações diferentes e assim, satisfazer o gosto da freguesa - tinha que ir acompanhado do responsável do setor para isso, porém o Subgerente havia me autorizado para tal, logo eu estava tranquilo com esta situação.

Eu estava no depósito, procurando as numerações dos modelos requisitados, quando o Gerente apareceu perguntando o que eu estava fazendo ali. Então respondi para ele que estava na minha função, procurando os produtos que as clientes desejavam.

Na mesma hora ele pediu-me que o acompanhasse até a sua sala, onde presenciei uma das interpretações artísticas com o maior teor de canastrice e caradepauzice da minha vida. O Subgerente jurava de pé junto que ele NÃO TINHA ME AUTORIZADO A ESTAR ALI. Sem testemunhas, era a palavra do IRMÃO DO DONO DA LOJA contra a minha.

Acontece, - e eu vim a saber disto naquele momento - que por uma ESTRANHA COINCIDÊNCIA, estavam sumindo SAPATOS FEMININOS! Vejam só que bacana (e nem duvido que sejam todos do número correspondente ao caso do idiota)! E eu estava lá dentro do depósito, sem a autorização de ninguém - nem mesmo a autorização para a venda de sapatos femininos eu tinha!

Ok, vocês me ferraram.

Assim, fui demitido sem justa causa, para encobrir um caso amoroso de terceiros. Apesar da filhaputassíssimamente vontade de entregar o affair que lascou a minha vida ao corno ignóbil, eu me contive. Eu tinha preocupações maiores, tais como resolver a minha vida financeira a partir dali.

Indo para a casa dos meus pais, ainda na Rua Delamare, antes da Sete de Setembro, eu vi uma placa com os dizeres: PRECISA-SE DE DESENHISTA. Era uma "agência de publicidade" que produzia faixas, placas e painéis. Em uma época onde não existiam plotters nem impressoras jato de tinta, estava ali minha salvação.

Conversei com o Sr. Waldir, o proprietário, que ao olhar para mim, me levou para o fundo do local, cheio de baldes de tinta, trinchas, faixas, placas e pincéis. Alguns caras pintavam letras em faixas de tecido morim com uma habilidade única.

Então, ele apontou para uma grande placa em branco e me disse:

- Vamos ver se você sabe pintar mesmo. Estamos fazendo a campanha para o Dia dos Pais. Você vai começar fazendo a base para o letrista pintar em cima. Então pinte um fundo nessa placa aí, faça um céu e encha de nuvens.

Eu sorri.

Fábio Marchi
Enviado por Fábio Marchi em 22/08/2011
Código do texto: T3174890
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