Simone
O Saloon Country Club, apesar de ter um nome objetivo, sem rodeios (com o perdão do trocadilho infame), de country mesmo era só a sua marca - o nome adornado com um chapéu de cowboy toscamente desenhado e um par de cavalos empinando suas patas dianteiras, guardando as laterais do conjunto.
No Saloon, o que rolava mesmo era dance, o melhor da dance music dos áureos anos 80 e do iníciozinho dos anos 90. De VEZ EM QUANDO, o DJ soltava algumas pérolas de Xitãozinho e Xororó ou da dupla João Mineiro e Marciano - ou um bom vanerão gaúcho, só para justificar o nome do ambiente. Essa também era a deixa para chamar alguma dama solitária (ou desacompanhada) para um bom rasta-pé ou quem sabe, alguma coisa a mais, depois.
Eu tinha uma rotina quando ia ao Saloon. Antes de entrar, passava uma boa parte da noite ali na outra esquina, na Avenida Rio Branco (ou na Rua América, dependendo do trecho) em um gostoso barzinho chamado Praça da Cerveja, bebendo chopp gelado antes de encarar a consumação mínima da dita cuja danceteria. Só sinto que que nessa época a Praça da Cerveja já estava mostrando francos sinais de decadência - seu público se tornava cada vez mais escasso e já não era raro as noites sem que ao menos abrisse suas portas, por falta de clientes, não tão fiéis e assíduos quanto eu.
Uma vez lá dentro do Saloon e passado o tempo inicial dos olhos acostumarem-se à luz negra, era só alegria. Uma galera bacana frequentava aquele ambiente - e também uma galerinha não tão bacana assim - porém havia, ao contrário da Disco Funk (um ícone anterior à este momento) uma saudável e harmoniosa convivência entre os participantes da balada.
E foi no Saloon que conheci a Simone - morena, nanica, tanajura, seios pequenos, sorriso cativante e um olhar penetrante que derretia meu coração. Ali começava, para meu azar - ou para minha sorte - um dos casos mais avassaladores da minha vida.
Na noite em que nos conhecemos, dançamos e conversamos muito. Era uma garota encantadora. Combinamos de nos encontrar outras vezes.
E por muitas vezes nos encontramos, novamente.
Um dia, ela passou em casa, demos uma volta e então ela seriamente, me revelou: - Fábio, talvez você fique chateado com o que eu vou te falar, mas eu sou casada.
Sim, não existe um erro de formatação neste texto. Simplesmente fiquei sem palavras por um longo período de tempo, não sabia o que dizer, o que falar, o que agir. Apenas fiquei olhando para ela e para falar verdade, nem imagino que cara eu fiz.
Antes da Simone, eu já tinha tido um outro caso com uma mulher casada na faculdade (e deixo isso para outro texto) e ter aquela revelação naquele momento me fez sentir como um cara com um carma a ser resolvido na vida. Não era possível! A segunda mulher casada , na sequência?
Mas eu, realmente, não sabia que ela era casada - nunca a tinha visto antes, não sabia muita coisa sobre a sua vida. A única coisa que importava é que existia mais química entre nós do que todo o laboratório do Santa Teresa, da UFMS e da Embrapa, juntos.
Então ela jogou as cartas sobre a mesa:
- Meu casamento é de aparências, ele me dá tudo o que eu quero e em troca, sou a mulher dele, seu objeto de exibição para a sociedade. Ele vive mais tempo em outras cidades do que aqui, comigo. Porém, como você pode observar, não sou feliz. Gosto de você e gostaria de continuar contigo, porém, terá que ser desta forma, como amantes.
Ah, o velho e sábio ditado: amor de pica - quando bate - fica. E fiquei com ela durante quase dois anos, sempre nesse jogo perigoso. Encontro às escondidas, motéis, bares sujos na Bolívia, casas de amigos coniventes e cúmplices da situação, do amor proibido, do amor bandido.
Mas não tão bandido quanto o marido da Simone. Não vou entrar em detalhes sobre seus negócios excusos ou sobre o seu temperamento tão vil e cruel - que vim a saber depois - pois quem tem cu (e eu ainda tenho o meu, intacto), tem medo.
E o que a gente não faz pela maldita carne mijada...
Uma vez estava eu na sua casa e sem aviso algum, o cara chegou do nada! Ele ia viajar e estava na estrada quando percebeu que tinha esquecido alguns documentos e voltou! Ainda bem que meu anjo da guarda era o de um cachorro que chupava manga porque quando ele entrou na sala de estar, eu estava sentado, folheando algumas revistas, esperando a Simone se aprontar para saírmos. Na sala, estavam comigo mais duas amigas dela, que também a aguardavam (e sabiam do nosso caso) para uma carona ao cabelereiro.
Ele entrou, nos cumprimentou (e penso que não sentiu o cheiro da merda, porque devo ter cagado nas calças) e foi até o quarto, pegar os ditos documentos e falar com ela.
Aí ele saiu do quarto com ela, ela olhou para mim e disse:
- Amor, o André (e descobri que meu segundo nome fica bem para uma bicha francesa) é um estilista amigo nosso. Vai nos ajudar a fazer compras, pois se tem um cara que entende de moda, é ele.
Eu saquei a situação. Tinha virado uma bicha instantânea, um miojo gay.
Como meu senso de sobrevivência era maior do que a minha caganeira, eu inclinei minha cabeça de lado e pisquei o olho para ele! Sim, amigos leitores, o que a gente não faz para manter a alma dentro do corpo e o corpo fora de um caixão?
Ele balançou a cabeça, sorriu meio sem graça e ao sair disse:
- Vê se não gasta muito, hein? O guarda-roupas não cabe mais nada.
E foi embora.
Nem preciso falar que nesse dia, o pinto pediu férias. Não tinha como. Não conseguia tirar a imagem daquel cara de quase dois metros - e bandido - da minha cabeça. Eu precisava de um tempo.
Mas com a Simone eu também me divertia, e muito. Realizamos muitas fantasias, jogos de sedução e absolutamente deliciosos.
Porém, às vezes, essa diversão excedia além da conta e perdíamos a noção do perigo.
Teve uma vez em que fomos à um baile com a Banda Chamma, no Riachuelo.
Reunimos vários amigos à mesa, várias garrafas de whisky esparramadas sobre a mesma. O que eu não tinha ainda me tocado era que eu estava perdidamente apaixonado pela Simone. Coisas triviais entre um casal "normal" como dançar juntos ou beijar em público eram estritamente proibidos para nós. E isso de certa forma, acabava me frustrando demasiadamente.
Assim nesse dia, quase coloquei o nosso caso na reta final.
Sozinho, bebi uma garrafa inteira de whisky. E óbviamente, o fígado é um órgão vital que precisa ser respeitado, ainda que o dono dele tenha 19 anos de idade. O fígado não conhece desaforo. E assim, fiquei trêbado ao cubo. E um bêbado falante, chato e cheio de querer.
Me levaram para fora da festa, vomitei muito. Eu falava demais, falava pelos cotovelos. Era o meu primeiro porre de whisky. Entrei no carro dela, vomitei no carro. Ela me levou para a casa dela, vomitei na sala. Ela e uma amiga me arrastaram para o quarto, para tirar mimha roupa e me jogar no chuveiro, vomitei no quarto. Eu era uma máquina de fazer vômito.
Enfim, me deixaram embaixo do chuveiro gelado, enquanto o café forte, preto e fumegante queimava a minha boca. Que porre.
Quando melhorei um pouco, ela me deixou em casa e não disse nada.
Ficamos sem falar algum tempo, ela estava muito chateada, e com toda a razão do mundo.
Mas passados alguns dias, ela me ligou e voltamos a nos encontrar com frequência, novamente. Ela me disse que estava decidida a terminar com seu relacionamento, depois que resolvesse algumas pendências com o corn.., com seu marido.
Uma noite dessas, eu adormeci na sua casa. A noite estava propícia. Ela já tinha ligado para uma casa que eles tinham em outra cidade e ele estava lá - o sinal que eu tinha o passe daquela noite livre, pois era muito distante e ele não viajava à noite, pois já tinha sofrido um acidente de carro noturno uma vez e jurou que nunca mais viajaria durante a noite novamente. Estava eu dormindo profundamente quanto ouvi o ronco do motor do carro ingressando na garagem da sua casa e a luz dos faróis invadindo as frestas da cortina. Devo ter batido a cabeça no teto da sala, de tão alto que eu pulei da cama. Só tive tempo de pegar minhas roupas, meu par de tênis e correr para os fundos, para o quintal.
O problema não era ele me encontrar ali. O problema não era ter um flagrante conjugal. Escândalos, socos, tapas e traições acontecem a todo instante, no mundo todo. O problema é que este corno era bandido, malvado e andava armado.
Mas que bosta de casa. Quintal minúsculo. Olhei para uma grade externa de uma janela e trepei nela, subindo em direção ao telhado. Sons de cachorro latindo. A merda do cachorro do vizinho não parava de latir, desesperadamente. Pensei até em cortar um testículo meu e jogar para aquele maldito vira-lata fofoqueiro, para ver se ele calava a boca, mas para minha sorte ele desistiu após alguns minutos, senão provavelmente vocês não estariam lendo isso.
E no telhado fiquei corujando, imóvel. Escutei ele entrando na casa, ela recepcionando-o. Chaves, sons abafados no chão. Voz grave, quase incompreensível. Luz da cozinha acesa, barulho de água da torneira, fogão aceso. Com o som de colher batendo no metal, subiu o aroma de café sendo feito na hora.
A porta dos fundos foi aberta, a luz da cozinha foi inundando o quintal. Ele saiu, sentou-se em uma cadeira de arame e acendeu um cigarro.
E aqui eu faço uma pausa para lamentar vários momentos importantes que a Ciência perdeu, por não ter nenhum cientista por perto para documentar estes fenômenos que vos descrevo: - O tempo máximo que uma pessoa consegue ficar sem respirar;
- O tempo máximo que uma pessoa consegue ficar com o coração parado, voluntariamente;
- O recorde máximo de contração do esfíncter anal, pois não passava nem mesmo um átomo naquele momento de silêncio e de expectativa.
Enfim, tirando o fato que meu nome não entrou para o Guiness por estes méritos, meu sócio tomou seu café, fumou seu charuto cubano e entrou.
E o tempo vai, o tempo vem, a porra do dia amanhecendo e cadê você, Simone?
Lá pelas cinco e meia da manhã, galo cantando, sol nascendo firme me aparece ela, de robe no quintal, me chamando, quase sussurrando.
- Desce logo, antes que os vizinhos te vejam.
E desci com todo o cuidado para não fazer barulho. Nunca mais consigo fazer iso novamente na vida, pois parecia um gato selvagem, de tão veloz e ágil que eu executei os movimentos da descida, sorrateiramente.
Então ela abriu a porta da área de serviço e fui embora, pálido como cera, com o coração tentando retomar sua atividade normal.
Muitas coisas aconteceram na minha vida após esse dia. Nossa relação foi desgastando cada vez mais, eu passei a me arriscar cada vez menos e a ficha foi caindo. Eu ia acabar morrendo daquela forma. Eu queria viver e tinha uma longa vida pela frente. Não dava mais.
Assim, da mesma forma que começamos, terminamos o nosso caso, em uma longa conversa.
Muito tempo depois, com ela já separada e tendo outra vida, nos reencontramos.
Mas a química já tinha acabado. Como qualquer reação química, existe um tempo útil para que os componentes da fórmula fiquem ativos e exerçam sua finalidade.
E o nosso tempo, enfim, findou-se.