Padre Amércio
Sempre me consideraram um tanto quanto maluco, fora do contexto, muito hiperativo.
O que poucos sabiam é que, por consequência de uma falta de oxigenação cerebral durante meu parto, sofri de disrritmia cerebral (uma forma branda e temporária de epilepsia) até os 21 anos. Assim, tomei o famoso tarja preta Gardenal durante um bom tempo na minha tenra juventude.
O Gardenal era o meu freio. "Não pode beber", o médico era explicíto nos meus exames periódicos. "Nem fumar e muito menos usar drogas." Com essas ressalvas, passei careta boa parte da minha adolescência, com exceções homéricas, que vocês conhecem (e ainda vão conhecer)
Porém, indiretamente, o Gardenal me chapava. Dava muita, muita sonolência. Meus horários para tomar as doses diárias eram regulados para que eu pudesse ter uma vida ativa e normal, mas algumas vezes, distraído como eu sou, esquecia de tomar o remédio nos horários demarcados.
Um dia desses, fiquei acordado até mais tarde e esqueci de tomar minha dose noturna no horário certo. Resultado: o efeito inicial do sonolência se prolongou além do esperado.
Acordei atrasadíssimo!
Nessa época, eu estudava no Santa Teresa,nos idos de 86. Eu tinha acabado de ganhar um Festival estudantil da Interpretação pela mesma escola.
E, obviamente, como todas as merdas que acontecem na nossa vida (nunca as merdas acontecem com coisas sem importância), eu tinha uma prova importante na primeira aula!
Corri despenteado, sem tomar banho, tênis desamarrado e com a escova de dentes na boca cheia de creme dental, direto para a escola, distante cinco quadras.
Chegando lá, o portão principal já estava fechado, estando apenas a porta da escada da XV aberta, com o Padre Amércio como seu principal guardião.
- Padre, pelamordejesusmariaejosé, me deixa entrar, tenho prova na primeira aula. Impassível, ele respondeu:
- Acordasse mais cedo.
E porta na cara.
Ok, nem pensei em contar até 1000 para amenizar o ataque cardíaco iminente. Desci pulando as escadas como um cabrito e parti como um raio para o muro da Rua Cuiabá. Pensei comigo: vou pular essa porra e fazer essa prova!
Dito e feito. Pulei o muro , subi quatro lances de escada e consegui chegar na sala a tempo de fazer a prova.
Lá pela terceira aula, me passa o Padre Amércio pelo corredor e através daquele janelão, me vê sentado, todo garboso. Ele olhou para mim e me chamou com um sinal, para que eu saíssse da sala.
No corredor, ele começou a falar alto comigo como "quem autorizou vc a entrar", "como você entrou" e começamos a discutir. Em todas as salas do corredor começaram a pipocar cabecinhas para fora das janelas.
Então ele disse para me retirar da escola e que eu só voltasse novamente com a presença dos meus pais.
Nem perdi tempo argumentando. Sangue italiano fervendo nas veias, corri novamente para casa e lá volto eu com minha mãe, à tiracolo, tentando entender o que aconteceu.
Na sala da Diretoria, o padre (que era o Diretor) indignado, diz entre outras coisas, a seguinte frase: "A atitude de um aluno discutir com um superior escolar é a atitude de um desiquilibrado mental".
Apitou uma sirene no meu cérebro. Tudo ficou vermelho. Eu apoiei os cotovelos na mesa dele e disse, suavemente:
- Padre, o senhor indiretamente me chamou de louco?
Sem resposta. Ele olhou fixamente nos meus olhos e arqueou as sombrancelhas, como se disse "acho que sim, né?"
Então, com uma velocidade que deixaria o Superman na rabeira, pulei no pescoço dele, esganando-o e gritando: "Vou te mostrar quem é louco, padre safado!!!". Caímos ambos no chão, ele sentado em sua poltrona reclinável, e eu, por cima dele.
Gritaria geral. Era hora do recreio no Santa Teresa. Pessoas amontoavam-se nas janelas e em torno da Diretoria para saber o que estava acontecendo.
Minha mãe conseguiu me tirar de cima do padre e me empurrou para a fora da sala dele, trancando a porta.
Eu esmurrava e chutava a porta ( nessa altura do campeonato estava me divertindo muito, sabendo que se a via crucis virou circo...)
Minha mãe pediu desculpas para o padre, saiu da sala dele e imediatamente foi direto para a Secretaria, pegar minha transferência.
Bem, isso virou lenda por muitos anos. Na época eu pouco me importava com o que falassem de mim, desde que falassem. So, fuck all.
Quase 15 anos depois desse fato, reencontrei-me com ele, em um café aqui em Corumbá.
Eu o reconheci, mas ele não me reconheceu. Cheguei perto dele e disse:
- Padre, você se lembra de mim?
Ele fez sinal com a cabeça que não.
- Eu sou o garoto que lhe deu uma surra no Santa Teresa, padre.
Ele ficou com os olhos esbugalhados. Eu rapidamente o acalmei:
- Calma, Padre. Eu gostaria de lhe pedir desculpas. Eu era muito jovem e inconsequente. Por favor, perdoe-me.
E então ele sorriu, me perdoou e tomamos um café juntos.
Eu não era louco, mas ali eu vi o quanto a vida pode ser maluca...