Gincana

Se existia uma coisa bacana de se fazer em uma cidade "fim de linha" como Corumbá-MS nos anos 80 e 90 eram as divertidíssimas gincanas.

Geralmente organizadas pelas rádios FM locais, as gincanas eram a mistura perfeita de diversão e irreponsabilidade - afinal, poderia existir coisa mais prudente do que dar provas quase impossíveis de serem cumpridas em um período de tempo estressante para um bando de jovens alucinados e motorizados (e muitas vezes, embriagados)?

Por sorte do destino ou por um bando de anjos-da-guarda bem treinados, nenhum acidente grave aconteceu durante essas provas. Talvez, uma ou outra velhinha tenha infartado quando algum carro tirou uma fina do seu corpo a 150 km/h dentro da área urbana, mas não creio que isso deva ser contabilizado como uma consequência direta dessas gincanas.

A regra, ainda que informal, era clara: em dia de gincana, ninguém podia dicar dando bobeira nas ruas.

Achar um alemão para dançar samba com uma mulata no palco do evento era fichinha. Como conseguir o mapa da cidade dentro do saguão do Aeroporto Internacional de Corumbá em plena madrugada? Eu disse madrugada? Sim, porque em muitas das gincanas promovidas, as provas eram distribuídas durante vinte e quatro horas ininterruptas. Isso só comprova minha teoria que os organizadores das gincanas QUERIAM que alguma coisa desse errado, talvez para ter alguma notícia relevante durante algum tempo, já que nada muito espetacular acontecia naquela época.

Algumas equipes, de tanto participarem das gincanas, tornaram-se folclóricas durante o evento, como a Caça-Fantasmas (ironicamente comandada pelo proprietário de uma funerária, o saudoso Jefres), a Força & Ação - que tinha a kombi mais rápida que já vi na minha vida, a Afoga o Ganso - uma extensão do bloco de Carnaval. No caso do Afoga, a galera costumava dizer que todos os carros da equipe eram movidos à alcool, porque TODOS praticamente andavam embriagados durante o evento, com exceção de Canibal, que já demonstrava seus dons causídicos, do tanto que ele brigava com as outras equipes e com a coordenação dos eventos. Entre os destaques citados, havia até uma gangue de militares denominada Comandos Jacaré, entre tantas outras que construíram sua história levantando a poeira das lajotas de Corumbá e Ladário.

As gincanas provocavam uma tensão constante: primeiro, a tensão de saber qual seria a prova solicitada e o tempo necessário para cumpri-la. Segundo: a tensão de escolher rapidamente quais seriam os membros designados para cumprir as tarefas requeridas. Terceiro: a tensão de correr como um louco pelas ruas da cidade para achar os itens desejados ( e viver para isso). Quarto, a tensão de voltar com o item e saber se pontuou ou não. Realmente, só jovens poderiam participar de uma porra dessas. Desta forma, participar dessa insanidade sem estar com o "bobo" em dia, era garantia de suicídio iminente.

E como as coisas eram mais simples naquela época! A Prefeitura liberava o evento, os policiais de trânsito não se importavam com o fato de adolescentes bêbados estarem dirigindo carros em alta velocidade em via urbana, o IBAMA não se importava conosco ao trazer uma arara canindé ou um jabuti, itens desejados daquela prova e os Bombeiros,

QUANDO era solicitada a sua presença, riam muito de tudo aquilo.

E os prêmios? Ahhhhh, os prêmios eram o sonho de consumo de todo bando de adolescentes inconsequentes: cerveja, muita cerveja. Ok, ok, tinha também algumas caixas de refrigerante, mas quem se importava com aquela porra?

Enfim, as gincanas corumbaenses eram uma coisa de malucos. Em termos de bizarrice, só perdia mesmo para corrida de carros de Puerto Quijarro, onde os bolivianos organizavam uma corrida com carros comuns, verdadeiros rachas pelas ruas da cidade vizinha do outro lado da fronteira, com a única diferença é que tinham um número pintado sobre cartolina e pregado sobre o capô dos veículos - e a rotina da cidade não era paralisada durante o evento! Por várias vezes pude testemunhar isso pessoalmente, com vários carros ultrapassando furiosamente o carro onde estávamos, durante nossos passeios pelas terras de los hermanos.

Mas a lembrança mais marcante que ficou na minha memória sobre estas gincanas malucas, foi uma vez em que eu estava no carro de Fauze Villa Mussa, o turquinho do Palácio das Tintas, da Dom Aquino. Juro que tento me lembrar quem mais estava no carro conosco, mas infelizmente essa informação perdeu-se nos confins da minha mente.

Lá pelas tantas da meia-noite e tarará, resolvemos comprar um garrafão de vinho para animar a madrugada, pois estávamos na pegada das provas desde o meio-dia. Assim, compramos o melhor vinho (se é que podemos chamar aquilo de vinho) que um adolescente poderia comprar: o bom e velho Forqueta, uma mistura de suco de uva e álcool puro.

E assim fomos, bebendo e dirigindo. Bebendo e discutindo. Bebendo e rindo muito.

Carro cheio, sacode para lá, sacode para cá.

Alguém vomita.

Cheiro de vômito no ar. Eu vomito. Escuto mais alguém gritando. E barulho de mais alguém vomitando.

O carro era um depósito de vômito. A frase "troca de fluidos corporais" nunca foi tão perfeita para descrever a cena, um vomitando sobre o outro.

O Fauze, no volante, não bebia e emputeceu. Era o SEU carro que estava servindo de latrina de buteco de beira de estrada.

Só me lembro do Fauze tocando a campainha da casa dos meus avós, entrando no carro e indo embora. Eu estava ali, no chão, todo vomitado e grogue.

Mais tarde, quando saí do hospital, após tomar muita glicose na veia e um esporro fenomenal do médico de plantão, fiquei sabendo que o Fauze fez um disk-entrega de bêbados, no mesmo estilo "abandono de bebês-orfãos".

E nunca mais participei de outra gincana na minha vida. Não pelo fato que meu avô me disse que arrancaria meu côro e me esfolaria vivo se isso se repetisse. Também não seria pelo fato que não tinha mais fígado nem disposição para encarar outro soro glicosado na minha vida.

Simplesmente desinteressei.

E colaborando com essa minha decisão, as gincanas não foram mais realizadas. Sim, aquele porre fenomenal foi a despedida daqueles momentos indescritíveis.

Muito tempo depois, tentaram ressuscitar o mesmo formato das gincanas, mas desta vez para recolher alimentos, roupas, lixo - mas os tempos já eram outros.

Outra geração, outra cabeça.

E a gincana, enfim, teve sua prova final.

Fábio Marchi
Enviado por Fábio Marchi em 20/08/2011
Código do texto: T3171916
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