O 24 de Agosto

Agosto de 2005.

Dia 24 de Agosto de 2002, viagem para Gurupá a fim de acompanhar o manejo florestal de açaizais nativos. Posse do senhor Ronildo, conhecido como Sarapó naquela ilha, a Ilha de Santa Bárbara. Estávamos no inicio da estação equatorial da estiagem marajoara, aliás, não sei se é correto chamar de estiagem, pois sempre chove na região. Tem época que chove pra caramba e período que nem tanto. Pois bem, o fato é que era o momento para o começo do manejo, direcionado naquela etapa, sobretudo, para a limpeza “por baixo” dos açaizais.

Desembarco no porto de Sarapó, prontamente como um soldado para os dias de campo e vejo o dono da casa deitado na rede, na sala, embalando-se a utilizar o dedão do pé na parede de tábua da casa como impulso, com a unha indo e vindo trazendo lascas de madeira da parede.

- Sujeito, cadê os cabra pro mutirão? Vocês não marcaram pra hoje e amanhã?

- Rapá, nós marquemu mas lembremu qui hoje é dia do tranca-rua.

- Diadoquê?!

- Do tranca-rua.

- Me explica.

- É qui hoje é dia de todo mundo fica em casa, pois o diabo tá solto.

- É mermu, é?!

- Hunf! Nem pensa em pegá em terçado, ir pro matu, essas coisa. Mas quando que a gente vai ao meno caçá. É panemice na certa.

- Bom. Tá bom. Vou ficar então na casa do Coruja e esperar até amanhã.

- Amanhã nós vai cum certeza.

A conversa deixou-me a pensar sobre aquela data esquisita. Fiz a primeira comunhão, fui crismado e não me recordo de data tão feia. Respeitei a decisão coletiva e no dia seguinte conforme o combinado fomos para a lida.

Em um dia desses de 2004 ainda, lendo um livro de história geral, passatempo meu desde moleque, encaixei os olhos na data da maior matança realizada na França entre católicos e protestantes (chamados naquela região de huguenotes). Era o ano de 1572, na data de 24 de agosto, conhecida a partir de então de “Noite de São Bartolomeu”. Foi a perseguição sangrenta aos suspeitos de heresia ou prática de religiões que não fossem o catolicismo. Em pesquisas, descobri que cerca de três mil pessoas (huguenotes, calvinistas e outros acusados) foram arrastadas de suas casas e degoladas em plena rua. Posso estar equivocado, mas lanço a hipótese de ter sido propalado naquele dia infeliz que o coisa-ruim estava solto nas pessoas não seguidoras da Igreja Apostólica Romana como justificativa para o extermínio em massa. A inquisição deve ter sido acionada e boa parte da população católica parisiense aderiu à peleja.

É uma teoria boba? Pode ser. De qualquer maneira, é interessante como ficou latente na cabeça de alguns amazônidas (mas pode ser milhares) o medo e a superstição não oriunda de suas próprias raízes, porém disseminados pelos missionários de tempos atrás. Virou mito.

Mitos são bastante poderosos. Podem disciplinar certas atividades quando não há argumentos mais comprováveis na vida real para explicar fenômenos. Os nórdicos, por exemplo, inventaram o deus Thor para explicar as estações do ano. Os hindus cultuavam e cultuam Shiva para demonstrar os ciclos da vida e as quase instransponíveis castas até hoje existentes. Curupiras tem a função de disciplinar a caça nas matas. Mães D´água protegem a boa pescaria.

Não se questiona a fé, nunca se deve. No entanto, quando conscientizadas dos fatos e optados por redirecionar a mesma fé, as pessoas libertam-se do medo e seguem a sua história por outros meios, caindo sobre si a responsabilidade por seus atos e não entregando-as aos deuses somente. Peraí! Quem sabe na sociedade moderna e nos meios de comunicação vigentes não estamos enxergando o mundo sob uma nova maneira de superstição, disfarçada agora de vestimentas e tecnologias sedutoras, modismos e seu exagero de ser? Sabem de uma coisa: talvez sejamos tão medrosos quanto o Sarapó.