POR QUÊ?
Costumo ir, quase diariamente, ao centro da cidade, onde funcionava a antiga Agência Centro do Banco do Brasil, na Av. Rio Branco. Nessas oportunidades, indo a uma loja ou a uma livraria, percorro outras ruas, principalmente a Princesa Isabel, a João Pessoa, a Felipe Camarão e a Cel. Cascudo. Aqui e ali, encontro e papeio com um colega, um conterrâneo ou algum raro amigo já feito aqui em Natal. Mas, não é a respeito deles que pretendo falar. É sobre algumas figuras humanas que vejo nas calçadas pedindo esmolas. Na do Banco do Brasil, diariamente lá estava, de cócoras, um velhinho de uns setenta anos, preto, cabeça branca, estendendo um velho boné. Ao vê-lo naquela posição, ficava imaginando como, à noite, deveria doer seu mucumbu, horas e horas naquela posição, as pernas feito uma cangalha. Vários anos o encontrei por lá. Até já me conhecia e abria para mim um sorriso desdentado. Chamava-se Vicente. Viera do interior e trabalhara como servente de pedreiro. Teve três filhos: dois homens e uma mulher. Dos homens, um foi embora para o Ceará e o outro desapareceu. A mulher morrera. Morava num casebre com a filha descasada e um neto inválido de dez anos, que sobreviviam à custa do que arrecadava de esmolas. Faz tempo que não o vejo. Suponho que já morreu. Atualmente, tem estado lá José Alves, deficiente físico, as pernas atrofiadas aos seis anos por paralisia infantil. Mesmo assim, casou, teve filhos, mas a mulher o abandonou; arranjou outra. Ainda na calçada das Lojas Americanas estava, diariamente, Edvaldo – o Ceguinho de Igapó, como ele mesmo se chama, ou chamava - 47 anos, cujos olhos foram perfurados por bandidos assaltantes. Há meses não o vejo no ponto.
Nas calçadas da João Pessoa há uma mulher que parecia ter uns cinquenta anos quando a conheci, uma chaga na perna inchada e enfaixada e uma muleta ao lado. Ao passar, certa vez, vendo-a fumando, não lhe dava nada. “Essa danada pede esmola pra comprar cigarros.” Depois, refleti: a infeliz precisa sair de casa todos os dias e ficar nessa posição da manhã ao fim da tarde, e seu único prazer deve ser fumar um cigarrinho”. Mudei meu sentimento. Emagreceu muito; hoje parece ter quase setenta.
Também na João Pessoa, perto da Livraria Paulinas, ainda há um homem de cor branca, aparentando uns cinqüenta anos, em cujo olho direito existe uma feia cicatriz, fechando-o. Chama-se Paulo. Na Princesa Isabel, por anos, esteve uma velhinha, as costas apoiadas na parede. Tinha os cabelos lisos, em coque, branquinhos. Sempre que a via, algo nela lembrava minha mãe: a pele da mesma cor e o mesmo formato do rosto. Sobre as pernas encolhidas, uma latinha, igual a essas de goiabada e nela algumas moedinhas. Várias vezes a encontrei cochilando. Tinha pena dela e me perguntava: meu Deus, por que essa pobre anciã necessita estar aqui todos os dias? Onde nasceu como terá sido sua infância, sua mocidade? Foi casada? Teve filhos? Certamente morava em algum distante barraco. Essa, também, faz tempo que não avisto.
Na calçada da Rio Branco, perto da Livraria Universitária, ficava uma preta magrinha, de ralos cabelos brancos, parecendo ter saído de alguma senzala. Mão mirrada sempre estendida, mesmo de olhos fechados, acho que cochilando. Era preciso acordá-la, porém mal abria os olhos. Perguntei-lhe, um dia, o nome: Alexandrina. A idade: perdera a conta.
Ainda na Princesa Isabel está seu Enedino, um preto corpulento com uma perna inutilizada, mas fisionomia sempre alegre. Já me conhece, só porque às vezes lhe dou uma moedinha e algumas palavras. Seu Enedino é uma figura! Nunca lhe perguntei o que aconteceu com sua perna, nem como consegue vir de onde mora para estar “no ponto” quase todos os dias.
E há mais. Nas imediações do antigo Hotel Ducal – não sei se ainda está – um cidadão apresentando uma das pernas bem mais grossa do que a outra. Uma coisa muito feia, parecendo um grande inchaço, tornando a pele lisa e avermelhada: elefantíase. No final da Ulisses Caldas, já chegando na Deodoro, calçada do Colégio da Imaculada, uma mulher exibia um imenso bócio, suponho que não mais operável. Desapareceu. Agora está lá dona Maria, que diz ter 80 anos. É viúva e teve sete filhos, mas só um mora com ela. Na Cel. Cascudo há seu Lino tocando uma rabeca fanhosa. Sempre que passo, ouço-o tocando “Atirei o pau no gato, tó, tó, mas o gato to, tó não morreu...”, tocando o cantando desentoado, a fim de amealhar alguns tostões..
Não são apenas esses. São centenas, milhares, os desfavorecidos da sorte. O que vejo, e todos vêem, não acontece só em Natal. Existe em Recife, em Fortaleza, em Salvador, São Paulo. Em Mossoró, lembro-me de Regina do Caroço, Pedro das Vassouras, Sinhá Maria o Boi Bebeu, Sebastião Cabeludo, Manoel Cachimbinho, além de vários outros. Estes pediam de casa em casa. Numa das praças, tem (ou tinha?) Seu Né, ex-jogador do Palmeiras, Veneno, ex-escudeiro do Dr. Cidinho (de saudosa memória), e Manoel, ex-jornaleiro, comunista, que, ao cair do andaime, de uns 10 metros de altura, num serviço da Catedral, gritou: “valha-me Deus”. Escapou, embora troncho. Ainda pede esmola? Não sei; faz anos não vou a Mossoró.
Ia concluir esta crônica recriminando os poderes públicos por tal situação, mas depois soube que o Governo, através do INSS, concede um abono às pessoas idosas, reconhecidamente inválidas e pobres, que não podem trabalhar. Num outro percurso, indaguei a diversos. De fato, a maioria recebe um salário mínimo, mas dizem que não dá: um, tem mulher aleijada, ou uma irmã louca, os remédios são caros, o aluguel do casebre, água, gás, um bico de luz, o “de cumê” e outras muitas necessidades. Apenas seu Lino da rabeca não sabia dessa “aposentadoria”.
– Pois vá à Caixa Econômica e peça informação.
Praza aos céus que criaturas como essas, nossos irmãos, venham a ter, um dia, uma velhice tranqüila, compatível com a dignidade do ser humano. Ainda vai demorar muito, mas esse dia, algum dia chegará...